Imagine um empresário que vence um processo licitatório, investe em estrutura, contrata pessoal, entrega o serviço com rigor técnico… e, meses depois, descobre que não receberá nem três quartos do valor contratado. Talvez menos. Sem aviso. Sem negociação. Sem direito ao contraditório.
O motivo? Uma “readequação” unilateral da Administração, que simplesmente ignora os limites legais para supressão de valores em contratos públicos.
Esse cenário, infelizmente, está longe de ser exceção. Tem se tornado cada vez mais comum a prática de suprimir drasticamente o objeto contratado — e o correspondente pagamento — em índices superiores aos 25% permitidos pela Lei nº 14.133/2021, sem qualquer acordo com o contratado.
Quando isso ocorre, não se está diante de um simples ajuste operacional. Trata-se de quebra contratual com consequências profundas, que compromete a lógica de confiança e previsibilidade que deve reger as contratações públicas.
A nova Lei de Licitações, a exemplo do que já previa a antiga Lei nº 8.666/93, estabelece um limite claro: até 25% de supressão.
Nada além disso pode ser imposto unilateralmente. E há uma razão estrutural para essa regra: o particular estrutura sua operação com base nos quantitativos previamente estimados pela própria Administração. Reduzir o contrato além desse limite, sem concordância expressa, é transferir ao contratado o custo de um erro de planejamento que não foi dele.
Isso vale especialmente para serviços que demandam mobilização de equipe, estrutura física, compra de insumos e garantias contratuais. O impacto não é apenas financeiro. É organizacional. Ao receber muito menos do que contratou, a empresa quebra. O contrato, que deveria garantir estabilidade, transforma-se em arrependimento.
Quem atua com contratos públicos enxerga um problema maior aí. Quando a Administração passa a descumprir, de forma recorrente, os parâmetros que ela mesma estipula nos editais e contratos, não se trata apenas de litígios pontuais — mas de uma erosão da confiança no próprio sistema de compras públicas.
Afinal, a lógica da licitação se sustenta em três pilares: isonomia, planejamento e segurança jurídica.
Quando o terceiro pilar é violado, os outros dois desmoronam por consequência. Se a Administração pode suprimir 40%, 50%, 60% do contrato assinado, sem acordo, o que sobra para quem venceu legitimamente? Como planejar, contratar pessoal, alocar recursos ou mesmo estimar margem de lucro?
Na realidade, o problema começa na origem.
Quando a estimativa da Administração não é séria, o contrato vira ficção. Quando a execução é reduzida sem acordo, o contrato vira armadilha. E o que deveria garantir previsibilidade e remuneração mínima, transforma-se em um terreno instável — onde o contratado arca com o custo do erro estatal.
Nesse cenário, não se trata apenas de receber menos: trata-se de mobilizar estrutura para uma demanda que nunca veio. De contratar equipes que não serão aproveitadas. De arcar com garantias que não servirão para nada.
A supressão contratual ilegal não é só um problema do contratado. Ela tem um efeito em cascata. Rompe o equilíbrio econômico-financeiro do vínculo. Envia sinais ambíguos ao mercado. Desestimula empresas sérias. Premia quem joga com a margem judicial. E pior: mina a credibilidade da própria licitação.
Afinal, de que adianta vencer um certame, apresentar a melhor proposta, firmar contrato… se a Administração pode, sozinha, mutilar o objeto e inviabilizar a execução? Não é exagero dizer que a supressão contratual acima dos limites legais virou um novo tipo de risco oculto nas licitações.
Um risco que não está no edital, nem no contrato — mas que aparece no meio do caminho, quando já é tarde para voltar atrás. E que pode arruinar negócios saudáveis.
Quem opera nesse campo sabe: há um descompasso crescente entre a retórica da governança pública e a prática contratual do dia a dia. A lei fala em planejamento, em estimativas rigorosas, em matriz de riscos. Mas parte da realidade ainda se guia pelo improviso. E o contratado, que deveria ser parceiro da Administração, acaba tratado como fornecedor descartável — útil enquanto conveniente, dispensável quando incômodo.
Não é assim que se constrói um ambiente de confiança. Não é assim que se atrai concorrência qualificada. O contratado não pode ser surpreendido com cortes que ultrapassam os 25% permitidos por lei, sob o pretexto de necessidade ou conveniência administrativa.
Ocorre que a legalidade impõe limites. A previsibilidade impõe respeito. E a boa-fé, que deve reger toda relação contratual, impõe diálogo, não imposição.
É preciso reafirmar: o valor contratado não é estimativa livre. É parâmetro. É garantia mínima. É o chão sob os pés de quem aceita o risco de prestar serviço ao Estado. Suprimir esse valor sem acordo é mais do que ilegal: é desleal
A verdade é a seguinte: não se exige da Administração uma bola de cristal. A lei já prevê certa flexibilidade. Mas há limites. Porque quem participa de uma licitação não está se aventurando: está confiando na legalidade do processo.
Se o Brasil quiser um sistema de contratações públicas minimamente confiável, é por aí que deve começar: respeitando os limites que ele mesmo impôs. Porque o contrato público é — ou deveria ser — um pacto. E pacto, em qualquer regime jurídico digno desse nome, se cumpre. Não se amputa.
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