INTRODUÇÃO
A exigência de atestados de capacidade técnica para fornecimento, sobretudo no âmbito, tem sido objeto de recorrentes debates no Direito Administrativo e nas contratações públicas. De um lado, encontram-se aqueles que questionam se tais requisitos não representariam uma restrição à competitividade; de outro, está a preocupação legítima da Administração em contratar fornecedores capazes de executar adequadamente os objetos licitados.
É importante destacar que a Lei nº 14.133/2021 não trouxe previsão expressa de exigência de atestados de capacidade técnica para fins de fornecimento de bens. O art. 67 da referida norma, ao tratar da qualificação técnico-profissional e técnico-operacional, restringe-se a hipóteses vinculadas à execução de obras e serviços, como se observa de sua redação: (i) apresentação de profissional com atestado de responsabilidade técnica por obra ou serviço de características semelhantes; (ii) certidões ou atestados que demonstrem capacidade operacional na execução de serviços de complexidade equivalente ou superior; (iii) indicação de pessoal técnico, instalações e equipamentos adequados; (iv) prova do atendimento de requisitos legais específicos; (v) registro ou inscrição em entidade profissional competente; e (vi) declaração de ciência das condições locais para a execução contratual.
Dessa forma, não se encontra no dispositivo qualquer menção à exigibilidade de atestados de capacidade técnica voltados exclusivamente ao fornecimento de bens, de modo que eventual imposição dessa natureza deve ser vista com cautela, sob pena de restringir indevidamente a competitividade e afrontar os princípios da isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa.
Todavia, cumpre ressaltar que, embora recentes decisões do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) venham sinalizando para a admissibilidade da exigência de atestados de capacidade técnica, tal orientação não afasta a constatação de que a Lei nº 14.133/2021, em sua literalidade, não contemplou essa possibilidade para hipóteses de fornecimento. A interpretação que amplia o alcance do art. 67 para abarcar o simples fornecimento de bens parece destoar do comando normativo, que se limita a obras e serviços. Exigir atestados nessa situação, ainda que sob o argumento da vantajosidade ou da suposta razoabilidade, representa criar requisito não previsto em lei, com inequívoco potencial de restringir a competitividade do certame e de comprometer o princípio da legalidade estrita que rege as contratações públicas.
ATESTADOS COMO GARANTIA DA EXPERIÊNCIA DO FORNECEDOR – ENTENDIMENTO DO TCE – PE
Todavia, é importante destacar que recentes decisões do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) vêm sinalizando em sentido diverso, admitindo a exigência de atestados de capacidade técnica como medida legítima e razoável. No Acórdão nº 1696/2025 (Proc. TCE-PE nº 25101188-4, rel. Cons. Carlos Neves), ficou assentado que tal exigência não configura restrição à competitividade, pois tem como finalidade comprovar a experiência mínima dos fornecedores, garantindo que o contratado detenha condições efetivas de executar o objeto da licitação. O raciocínio esposado pelo Tribunal é claro: não se trata de afastar potenciais interessados, mas sim de estabelecer um parâmetro objetivo que assegure maior confiabilidade e reduz o risco de inadimplemento.
Sob esse prisma, a Corte de Contas interpreta que a exigência se harmoniza com o art. 67 da Lei nº 14.133/2021, sobretudo quando relacionada de maneira proporcional e pertinente ao objeto da contratação. Em outras palavras, o entendimento do TCE-PE não é o de restringir o mercado, mas de conciliar a busca pela ampla competitividade com a necessidade de preservar a vantajosidade da contratação, ao exigir que os licitantes comprovem experiência compatível e adequada ao nível de exigência da Administração Pública.
Nesse contexto, observa-se que a jurisprudência recente do TCE-PE busca uma linha de entendimento que reforça a segurança jurídica dos certames, ao reconhecer que a exigência de atestados de capacidade técnica não se revela como barreira artificial, mas como mecanismo de proteção do interesse público. Ao delimitar parâmetros objetivos e proporcionais de qualificação, a Administração não apenas seleciona fornecedores aptos, como também evita contratações temerárias que possam resultar em paralisações, aditivos onerosos ou inadimplementos contratuais, preservando, em última análise, a eficiência e a economicidade da despesa pública.
EXIGÊNCIA DE ATESTADO DE CAPACIDADE TÉCNICA PARA BENS COMUNS:
A exigência de atestado de capacidade técnica para o simples fornecimento de bens comuns, como papel A4, material de limpeza, revela-se medida desproporcional, desarrazoada e juridicamente questionável. Em primeiro lugar, a Lei nº 14.133/2021, ao disciplinar a qualificação técnica no art. 67, restringiu tal exigência a hipóteses em que há necessidade de comprovação de experiência na execução de obras ou serviços de maior complexidade tecnológica e operacional. Em nenhum momento a norma faz referência à obrigatoriedade de apresentação de atestados para o fornecimento de bens padronizados, cuja entrega não demanda conhecimento técnico especializado, tampouco estrutura operacional diferenciada.
Além disso, condicionar a habilitação em licitações de objetos corriqueiros à apresentação de atestados representa, em verdade, criar barreiras artificiais à ampla competitividade, em frontal afronta ao art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, que consagra o princípio da isonomia e da seleção da proposta mais vantajosa. Tal exigência restringe indevidamente a participação de micro e pequenas empresas, que, embora plenamente capazes de fornecer os bens, muitas vezes não dispõem de atestados formais em razão da natureza simples de sua atividade. O resultado prático é o esvaziamento do caráter competitivo do certame, com prejuízo à Administração e à coletividade, que deixa de usufruir de melhores preços e condições.
Do ponto de vista prático, é inegável que a aquisição de bens comuns não exige comprovação de expertise prévia: o fornecimento de papel A4, por exemplo, envolve apenas a entrega de um produto não padronizado, cujas especificações técnicas são universais, amplamente conhecidas e facilmente verificáveis em catálogos, embalagens ou certificações de qualidade. O mesmo se aplica ao material de limpeza, que já possui requisitos de qualidade e padronização estabelecidos em normas da Anvisa e órgãos de vigilância sanitária. Exigir atestados para situações dessa natureza significa, em última análise, burocratizar o processo licitatório e criar entraves injustificados à livre concorrência.
Registre-se que inexiste fundamento expresso na Lei Federal nº 14.133/21 para a exigência de atestados de capacidade técnica para fornecimentos anteriores como requisito de qualificação técnica em licitação destinada ao fornecimento de bens. Nesse sentido, vide trecho da manifestação do Ministério Público de Contas junto ao TCE/SP, no bojo do Processo TC 023026.989.24-4: “(…) a norma do art. 67, inc. II, da Lei 14.133/2021 há de ser lida de forma literal, nos estritos termos do caput do citado artigo, sendo circunscrita a sua aplicabilidade à ‘execução de serviços similares’”.
Assim, afigura-se cristalino que a imposição de atestados de capacidade técnica em licitações para aquisição de bens comuns, de fornecimento trivial e sem complexidade operacional, além de carecer de amparo legal, viola princípios estruturantes da contratação pública, como legalidade, competitividade, economicidade e proporcionalidade. A Administração, nesses casos, deve pautar-se por critérios objetivos e impessoais de especificação do objeto, de modo a assegurar a seleção da proposta mais vantajosa, e não por exigências meramente formais que nada acrescentam à segurança do contrato e que apenas reduzem a concorrência.
A INCERTEZA NA EXIGÊNCIA DE ATESTADOS DE CAPACIDADE TÉCNICA EM OBJETOS COMUNS
A definição acerca da exigência ou não de atestados de capacidade técnica em licitações para aquisição de objetos comuns é permeada por significativa margem de incerteza interpretativa. De um lado, parte da doutrina e da jurisprudência sustenta que tais exigências devem ser excepcionais, sob pena de restringir a competitividade e desvirtuar a lógica da ampla participação de fornecedores, sobretudo quando se trata de bens padronizados e de fácil obtenção no mercado. De outro, decisões recentes do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) têm sinalizado que a imposição de atestados pode ser considerada legítima e proporcional, desde que guarde pertinência com a natureza e a complexidade do objeto licitado.
Nesse contexto, a atuação do gestor deve estar pautada no princípio da proporcionalidade. Assim, somente será legítima a imposição de atestados quando a medida se mostrar o meio mais adequado e menos gravoso para atingir a finalidade de assegurar a execução contratual, evitando exigências desarrazoadas que apenas afastariam potenciais licitantes.
Além disso, a Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro (LINDB), impõe que decisões administrativas sejam fundamentadas considerando as consequências práticas e a segurança jurídica. Dessa forma, ao decidir exigir (ou não) os atestados, o gestor devem avaliar não apenas a estrita legalidade da medida, mas também os impactos sobre a competitividade, a vantajosidade da contratação e o risco de execução insatisfatória. A LINDB, portanto, reforça que a decisão não pode ser arbitrária, devendo ser fruto de um juízo ponderado e motivado, que harmonize eficiência administrativa, proteção ao interesse público e equilíbrio entre os valores em conflito.
Em suma, não há solução única e pré-determinada: o espaço discricionário do gestor exige que a escolha seja fundamentada em critérios técnicos, pautada pela proporcionalidade e pela análise de consequências práticas preconizada na LINDB, conciliando a busca pela competitividade ampla com a responsabilidade de garantir a execução adequada do contrato.
CONCLUSÃO
À luz da análise empreendida, compreendo que a exigência de atestados de capacidade técnica não encontra respaldo legal quando aplicada ao simples fornecimento de bens comuns. A Lei nº 14.133/2021, em sua literalidade, restringiu tal requisito a hipóteses de obras e serviços, de modo que a extensão interpretativa para abarcar fornecimentos de objetos padronizados representa verdadeira inovação indevida, sem base normativa. Ainda que o Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco venha admitindo, em algumas decisões, a razoabilidade dessa exigência, entendo que tais precedentes não afastam o comando legal, nem tampouco autorizam a Administração a criar barreiras artificiais à competitividade.
Assim, defendo que os atestados de capacidade técnica devam permanecer restritos às contratações de serviços e obras, nas quais há efetiva necessidade de aferição da experiência do contratado em função da complexidade operacional envolvida. Para fornecimentos de bens comuns, como papel, material de limpeza ou outros produtos padronizados, a exigência de atestados se mostra desproporcional, carece de amparo legal e afronta princípios basilares da contratação pública, como a legalidade, a isonomia e a busca da proposta mais vantajosa. Nesse cenário, a Administração deve privilegiar especificações claras e objetivas do objeto licitado, assegurando ampla competitividade e maior eficiência no uso dos recursos públicos.
A reflexão crítica que se impõe é a de que a Administração deve pautar suas exigências por critérios de pertinência, razoabilidade e proporcionalidade, evitando criar barreiras artificiais à competição. Afinal, mais do que exigir formalidades sem respaldo legal, a finalidade precípua da licitação é assegurar a contratação mais vantajosa para a coletividade, o que se alcança pela ampliação, e não pela restrição, da competitividade.
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