Livia Beatriz Santos Silva

Cidades inteligentes para mulheres: Uma análise crítica a partir das obras de Jane Jacobs e Zaida Muxí

Postado em 26 de novembro de 2025 Por Lívia Beatriz Santos Silva Advogada, formada pela ASCES-UNITA. Especializada em Direito Imobiliário Empresarial e Atividades de Parcelamento de Solo pela UNISECOVI/SP. Vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/PE. Coordenadora do grupo de mulheres do IBRADIM. Sócia fundadora do Lívia Santos Advocacia.

1. INTRODUÇÃO E OBJETIVO

As mulheres detém a palavra final em cerca de 80% dos financiamentos imobiliários, esse foi o recorte produzido pela pesquisa realizada pela Bext – fintech de crédito multibancos brasileira, realizada em julho de 2025 (ROSENTHAL; ELISA, 2025).

O paradigma das Cidades Inteligentes (Smart Cities), focado na otimização tecnológica e na eficiência de dados, apresenta-se como a fronteira do planejamento urbano contemporâneo. Contudo, a simples adoção de tecnologia não garante a resolução de problemas estruturais de desigualdade e exclusão social. Neste contexto, o Urbanismo Ecofeminino emerge como uma abordagem crítica essencial, que exige que a cidade seja planejada com base na sustentabilidade da vida e na centralidade das tarefas de cuidado (MUXÍ; MONTANER, 2021).

Este trabalho tem por objetivo analisar a tensão e as possibilidades de convergência entre o conceito de Cidades Inteligentes e a perspectiva ecofeminista, questionando se as inovações tecnológicas endereçam, de fato, as necessidades de inclusão e segurança das mulheres. Para isso, são utilizadas as bases teóricas de Jane Jacobs e Zaida Muxí, confrontando-as com as normas urbanísticas de  Caruaru, São Paulo e Barcelona.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A crítica à racionalidade funcionalista que dominou o planejamento urbano do século XX encontra dois pilares fundamentais.

2.1. A Vitalidade Urbana de Jane Jacobs

A obra “Morte e Vida de Grandes Cidades Americanas” (2011) de Jane Jacobs enfatiza que a segurança e a vitalidade de uma rua dependem fundamentalmente da diversidade de usos, da densidade populacional adequada e do fluxo constante de pessoas. Jacobs introduziu o conceito de “olhos na rua”, referindo-se à vigilância natural proporcionada por vizinhos e comerciantes que utilizam e observam o espaço público.

Para Jacobs (2011), o planejamento deve promover a complexidade e a diversidade, contrastando com as zonas segregadas e monótonas propostas pelo modernismo. Esta vitalidade é intrinsecamente ligada à segurança feminina; a rua deve ser um espaço constantemente habitado para inibir o crime. Em um cenário de Cidades Inteligentes, a tecnologia (como iluminação responsiva e monitoramento) pode complementar essa vigilância, mas jamais deve substituir o tecido social orgânico defendido pela autora (JACOBS, 2011).

2.2. O Cuidado como Eixo em Zaida Muxí e no Ecofeminismo

A arquiteta e urbanista Zaida Muxí, em conjunto com Josep Maria Montaner, defende que o urbanismo tradicional desconsiderou as tarefas de cuidado, que historicamente recaem sobre as mulheres (MUXÍ, 2021). A cidade funcionalista, que separa trabalho, moradia e serviços em longas distâncias, penaliza a rotina feminina e a sustentabilidade da vida cotidiana.

O Urbanismo Ecofeminino propõe uma inversão de prioridade, colocando o cuidado (das pessoas, da comunidade e do meio ambiente) no centro do planejamento (MUXÍ; MONTANER, 2021). As propostas incluem a cidade dos 15 minutos, onde serviços essenciais são alcançáveis a pé, e a priorização do transporte público e da mobilidade não motorizada. Esta abordagem exige que as Cidades Inteligentes usem seus dados e tecnologias não para otimizar o fluxo corporativo, mas sim para mapear e facilitar as rotinas de cuidado e a proximidade de serviços, promovendo uma cidade mais justa e equitativa em termos de gênero.

3. ANÁLISE URBANA E NORMAS: SÃO PAULO, CARUARU E BARCELONA

A aplicação das perspectivas de Jacobs e Muxí nas normativas urbanísticas revela desafios concretos:

• Caruaru (PE): A legislação, como a Lei Complementar nº 091/2022 (CARUARU, 2022), tende a focar no controle de obras e parcelamento, seguindo um modelo tradicional que subdimensiona a qualidade do espaço público, a arborização e a micro-escala da vida social. A intervenção inteligente exige o uso de feedback cidadão para melhorar a iluminação e a acessibilidade em rotas de pedestres femininas, aplicando na prática o princípio da segurança e proximidade.

• São Paulo (SP): O Plano Diretor Estratégico (PDE) e a Lei de Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) (SÃO PAULO, 2014; 2016) focam no adensamento em eixos de transporte. O risco é que a verticalização e a concentração não sejam acompanhadas da infraestrutura de cuidado necessária (escolas, saúde, comércio local), podendo gerar insegurança e sobrecarga nas mulheres (MUXÍ, 2021). O planejamento inteligente deve usar dados para garantir que o adensamento cumpra as condições de diversidade social e de uso necessárias à vitalidade urbana (JACOBS, 2011).

• Barcelona (Espanha): Com a implementação das Superilles (Superquarteirões), Barcelona se alinha ao ideal de redução do automóvel e criação de espaços de convívio (proximidade e cuidado). O desafio, no entanto, é evitar a gentrificação, garantindo que a melhoria da qualidade de vida não expulse os moradores originais. A tecnologia de dados deve ser utilizada para monitorar o perfil socioeconômico e garantir políticas de habitação que preservem a diversidade social, um pilar fundamental de Jacobs (2011).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma Cidade Inteligente que se pretenda equitativa e sustentável deve transcender a lógica da eficiência instrumental. Ela precisa integrar as exigências de vitalidade urbana (JACOBS, 2011) e a centralidade do cuidado (MUXÍ; MONTANER, 2021) em seu cerne. A verdadeira inteligência reside na capacidade de usar a tecnologia para priorizar a vida e as necessidades das mulheres, transformando as normativas urbanísticas para gerar um ambiente genuinamente inclusivo e habitável. Mulheres pensando, falando, planejando repercutirão em cidades vivas, comunidades pulsantes, sociedades longevas e seguras.

REFERÊNCIAS

JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades Americanas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

MUXÍ, Zaida. Mulheres, Casas e Cidades. São Paulo: Boitempo, 2021.

MUXÍ, Zaida; MONTANER, Josep Maria. Política e Arquitetura: Por um urbanismo do comum e ecofeminista. São Paulo: Olhares, 2021.

ROSENTHAL, Elisa. Mulheres são as decisoras em 80% dos contratos de financiamento de imóveis no Brasil. linkedin.com/posts/elisarosenthal_mercadoimobiliario-setorimobiliario-activity-7386157854354825216-AXCj?utm_source=social_share_send&utm_medium=member_desktop_web&rcm=ACoAACaMD8MBbSAojr3EnbKiwrIEXqdkvly1IzQ acesso em 25 de novembro de 2025.

CARUARU. Lei Complementar nº 091, de 30 de março de 2022. Dispõe sobre o Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo. Caruaru/PE, 2022.

SÃO PAULO. Lei nº 16.402, de 22 de março de 2016. Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo. São Paulo/SP, 2016.

SÃO PAULO. Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014. Plano Diretor Estratégico. São Paulo/SP, 2014.

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