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Criminalização da pobreza: Uma análise do sistema penal seletivo no Brasil

Postado em 06 de agosto de 2025 Por Francisco Walflany de Oliveira Pereira Advogado Criminalista, Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-PI Subseção Oeiras e membro das comissões de Segurança Pública e Políticas Públicas. Atua com ênfase em Direito Público e Justiça Social.

Introdução

O sistema penal brasileiro, idealmente concebido para garantir a ordem e proteger os direitos fundamentais, revela-se na prática como um mecanismo de controle social que atua de maneira seletiva e desigual. A criminalização da pobreza não é uma falácia retórica, mas um fenômeno estrutural que perpassa desde a abordagem policial até a decisão judicial. Este artigo busca analisar como a seletividade penal opera no Brasil, atingindo majoritariamente pessoas pobres, pretas e periféricas, e reforçando desigualdades históricas sob o manto de uma suposta neutralidade jurídica.

1. O Direito Penal como instrumento de controle social

O Direito Penal, em sua essência, possui a função de proteger bens jurídicos essenciais à convivência em sociedade. Contudo, como adverte Michel Foucault, o poder punitivo, ao longo da história, foi moldado como instrumento de dominação, produzindo corpos dóceis e disciplinados. Nessa linha, Alessandro Baratta denuncia que o Direito Penal moderno serve a interesses de manutenção de uma ordem econômica e social excludente, punindo os desvios daqueles que estão à margem do sistema produtivo e protegendo os interesses das classes dominantes.

2. A seletividade do sistema penal brasileiro

Dados do INFOPEN (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) revelam que mais de 60% da população carcerária brasileira é composta por pessoas negras, com baixa escolaridade e oriundas de comunidades de baixa renda. Isso evidencia que o sistema penal, longe de ser neutro, é seletivo. Crimes patrimoniais de pequeno valor, como furto simples, recebem repressão imediata, enquanto crimes do colarinho branco, com impactos muito maiores na sociedade, frequentemente encontram impunidade.
Essa seletividade manifesta-se também na dificuldade de acesso à defesa técnica adequada. A Defensoria Pública, embora desempenhe papel essencial, é cronicamente subdimensionada, enquanto os réus pobres enfrentam julgamentos com poucos recursos técnicos e materiais.

3. A atuação das polícias e do Judiciário na perpetuação da seletividade

As abordagens policiais, muitas vezes fundamentadas em estereótipos sociais e raciais, refletem um viés estrutural. Jovens negros de periferia são frequentemente alvos de revistas e prisões em flagrante sem que haja elementos concretos de suspeita. O “suspeito padrão” é uma construção simbólica que autoriza a repressão preventiva a corpos racializados e empobrecidos.
No Judiciário, a seletividade também se evidencia na aplicação desproporcional de prisões preventivas. A jurisprudência frequentemente utiliza justificativas genéricas como “garantia da ordem pública” para manter pessoas presas antes mesmo de serem julgadas, mesmo diante de delitos de menor potencial ofensivo.

4. Impactos da criminalização da pobreza

A prisão de pessoas pobres produz um efeito devastador: desestrutura famílias, marginaliza ainda mais os egressos e dificulta sua reinserção social. A criminalização da pobreza reforça ciclos de exclusão, pois o estigma da prisão compromete o acesso a emprego, educação e oportunidades. O sistema penal, ao invés de ressocializar, reproduz violência e desigualdade.
Além disso, ao concentrar sua atenção nos delitos cometidos pelos pobres, o Estado negligencia as grandes estruturas de criminalidade econômica e corrupção, que permanecem intocadas. A seletividade penal, portanto, não é apenas injusta — é ineficaz.

5. Caminhos para um sistema penal mais justo

É urgente repensar o papel do sistema penal e adotar medidas que o tornem mais justo e menos excludente. O fortalecimento da Defensoria Pública, o uso de penas alternativas, o incentivo à justiça restaurativa e a reformulação dos critérios de prisão preventiva são caminhos viáveis. A formação humanizada de policiais e magistrados também é fundamental para romper com práticas discriminatórias.
Além disso, o enfrentamento da criminalização da pobreza exige políticas públicas intersetoriais que combatam a desigualdade estrutural: acesso à educação de qualidade, moradia digna, políticas de emprego e renda, e redução das desigualdades raciais.

Conclusão

A criminalização da pobreza no Brasil revela a face mais perversa de um sistema penal que deveria proteger, mas que, muitas vezes, oprime. A seletividade penal é um sintoma de desigualdades históricas e estruturais que se reproduzem sob a forma de legalidade. Superar esse cenário é um desafio que exige compromisso institucional, transformação cultural e atuação firme da advocacia em defesa dos direitos humanos e da justiça social.


Referências Bibliográficas

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2005.

ADORNO, Sérgio; DIAS, Camila Caldeira Nunes. Segurança Pública e Violência: a persistência de velhas agendas. São Paulo: Boitempo, 2016.

CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2023. IPEA/FBSP.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Justiça em Números 2023; Política de Enfrentamento ao Racismo Institucional.

BRASIL. DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional. INFOPEN – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias.

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