Danielle Vieira do Nascimento

Juridiquês e linguagem simples: O equilíbrio necessário para aproximar o cidadão da Justiça

Postado em 08 de outubro de 2025 Por Danielle Vieira do Nascimento Administradora, especialista em Administração de Finanças e graduanda em Direito pela FICR.

Um dos pilares da democracia é o acesso à Justiça. Mas de pouco adianta termos tribunais estruturados, magistrados competentes e processos eletrônicos se a linguagem usada nos documentos judiciais ainda é de difícil compreensão para a maioria das pessoas. O chamado “juridiquês” — repleto de termos técnicos e construções sofisticadas — é parte natural do Direito e cumpre uma função essencial: assegurar precisão, rigor e segurança jurídica. Assim como em qualquer profissão há linguagem própria, no Direito o uso do tecnicismo valoriza o trabalho dos juristas e garante clareza entre aqueles que dominam a área.

O problema surge quando esse vocabulário deixa de cumprir sua função técnica e passa a se tornar um obstáculo ao entendimento de quem precisa da Justiça. Cidadãos, advogados iniciantes e estudantes de Direito muitas vezes encontram enormes dificuldades para compreender petições, decisões e despachos. O desafio, portanto, não está em eliminar o juridiquês, mas em utilizá-lo de maneira equilibrada, ajustando a linguagem conforme o público e o contexto.

A Constituição Federal reforça a importância da transparência e do acesso à informação. O artigo 37 estabelece os princípios da publicidade e da eficiência na administração pública, enquanto o artigo 5º, inciso LX, garante a publicidade dos atos processuais. Não basta que os atos judiciais sejam públicos; eles precisam ser compreensíveis para que cumpram sua função social. É nesse cenário que surge o Visual Law, ou design jurídico aplicado, que combina elementos visuais, linguagem simples e técnicas de comunicação para tornar documentos jurídicos mais claros e acessíveis.

O Visual Law é uma aplicação prática do conceito mais amplo de Legal Design, que busca repensar a experiência do usuário com o sistema de Justiça. Se antes o foco estava apenas na precisão técnica, agora o olhar se amplia para a forma como o cidadão interage com a linguagem jurídica, priorizando clareza e acessibilidade sem abrir mão do rigor.

Nos últimos anos, o Judiciário brasileiro tem avançado nessa direção. A atual gestão do STF, sob o comando do ministro Luís Roberto Barroso, lançou o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, que mobilizou tribunais de todo o país para adotar práticas de comunicação mais claras. Essa iniciativa é simbólica: marca a linguagem acessível como prioridade institucional, elevando o tema a um compromisso coletivo.

Além disso, o CNJ instituiu, por meio da Portaria n. 351/2023, o Selo Linguagem Simples. O objetivo é reconhecer e incentivar, em todos os segmentos da Justiça e em todos os graus de jurisdição, o uso de linguagem direta e compreensível na elaboração de decisões judiciais e na comunicação com a sociedade. O Selo é concedido anualmente, sempre em outubro, em comemoração ao Dia Internacional da Linguagem Simples (13/10), reforçando o compromisso do Judiciário com a publicidade, a transparência e a acessibilidade.

Essas experiências mostram que é possível conciliar clareza comunicativa e técnica jurídica. Um mandado de citação, por exemplo, pode trazer um quadro visual com prazos destacados, sem perder validade jurídica. Uma decisão judicial pode iniciar com um resumo simples, seguido do corpo técnico, atendendo tanto às necessidades do jurisdicionado quanto da comunidade jurídica.

E as possibilidades vão além dos atos processuais. Imagine um contrato de consumo com ícones que indiquem direitos e deveres principais; uma intimação com calendário visual de prazos; ou ainda cartilhas digitais em linguagem cidadã explicando sentenças coletivas. Esses recursos tornam o Direito mais próximo das pessoas e cumprem efetivamente o que a Constituição prevê.

A tecnologia amplia ainda mais essas perspectivas. Ferramentas de Inteligência Artificial podem auxiliar advogados e tribunais a simplificar textos, gerar resumos objetivos e até sugerir elementos visuais, sempre com supervisão profissional. O uso consciente da IA pode democratizar o acesso à informação jurídica e reduzir a distância entre a sociedade e o Judiciário.

É verdade que resistências existem. Alguns juristas temem que a simplificação comprometa a seriedade do ato jurídico ou leve a interpretações equivocadas. Outros lembram das dificuldades práticas: a falta de capacitação de tribunais e escritórios, que muitas vezes não contam com profissionais de design ou tecnologia. Mas essas barreiras tendem a ser superadas com laboratórios de inovação, capacitação contínua e apoio institucional.

Nesse contexto, a OAB-PE pode ter papel fundamental. Mais do que fiscalizar a atuação profissional, a Ordem pode estimular boas práticas de comunicação, oferecer cursos e oficinas, além de incentivar universidades e faculdades de Direito a incluírem em suas grades conteúdos voltados à linguagem clara e ao design jurídico. Estudantes que aprendem desde cedo a importância da comunicação acessível tornam-se advogados mais preparados para lidar com clientes e com a sociedade.

O objetivo não é abolir o tecnicismo, mas dosá-lo. Há momentos em que termos jurídicos devem ser usados — por exemplo, em petições destinadas a magistrados. Mas quando o público é o cidadão que busca compreender o que está em jogo no seu processo, o cuidado com a linguagem se torna imprescindível. É essa dosagem que fará com que o juridiquês continue valorizando a profissão, sem excluir quem mais precisa dele.

Uma Justiça que fala de forma inacessível não cumpre plenamente sua missão. Ao adotar o Visual Law e integrar a Inteligência Artificial como ferramenta auxiliar, o Judiciário dá passos importantes rumo à transparência, à acessibilidade e à democracia. Documentos claros não diminuem a seriedade do Direito; ao contrário, aumentam a confiança da sociedade nas instituições e fortalecem a cidadania.

Mais do que uma inovação estética, essa mudança representa um gesto de respeito à coletividade. O Direito existe para servir às pessoas, não para confundi-las. Aproximar o cidadão da Justiça por meio de uma comunicação clara é construir uma ponte entre técnica e humanidade. É transformar cada decisão, cada mandado e cada sentença em instrumentos de cidadania.

A linguagem jurídica não deve ser um muro que separa a Justiça da sociedade. Pelo contrário, deve ser uma ponte que aproxima, que acolhe e que permite que cada cidadão compreenda seus direitos e deveres. O Visual Law não é apenas uma técnica: é uma postura ética, democrática e inclusiva. Ao repensarmos a forma de comunicar no Direito, damos um passo em direção a uma Justiça que não só decide, mas também cuida, esclarece e respeita. Porque, no fim das contas, a Justiça existe para servir às pessoas — e só é verdadeiramente justa quando todos podem entendê-la.  

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Resolução nº 332, de 21 de agosto de 2020. Dispõe sobre a ética, transparência e governança no uso da Inteligência Artificial no Poder Judiciário. Brasília, DF, 2020. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3351

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Portaria nº 351, de 19 de outubro de 2023. Institui o Selo Linguagem Simples. Brasília, DF, 2023a. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atosnormativos?documento=5100

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Ministro Barroso lança Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples. Brasília, 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br

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