De acordo com o novo Painel Violência Contra a Mulher, do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), lançado em março de 2025, durante a 3.ª Sessão Ordinária do CNJ, [1], até 30/06/2025, foram aplicadas mais de 454.818 medidas protetivas, com 76.994 casos novos registrados de violência contra a mulher registrados, sem contabilizar os casos de feminicídio; sendo que há 1.365.795 casos pendentes de julgamento totalizado em todos os Tribunais do país.
Não custa relembrar, a Lei Maria da Penha prevê em seu texto as modalidades de violência doméstica praticadas contra a mulher, desde a sua redação originária, são elas as violências física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A partir de então, criou-se um microssistema estruturado para coibir, proteger e mitigar as sequelas decorrentes da violência doméstica.
Em dezembro de 2015, foi editada a lei nº 13.239, que inseriu no Sistema Único de Saúde – SUS, a oferta e a realização de cirurgia plástica reparadora relativamente as sequelas de lesões causadas por atos de violência contra a mulher, que resultem em sequelas físicas e/ou estéticas. Estando previstas na lei também como instrumento de realização da norma o dever de informação, contido na obrigatoriedade dos hospitais e centros de saúde de informarem a vítima de violência doméstica da possibilidade da realização de cirurgia plástica reparadora.
Visando fomentar o acesso prioritário a cirurgia reparadora, a Lei nº 14.887/2024, inseriu o § 4º, no artigo 3º, da lei nº 13.239/2015, determinando atendimento prioritário em casos da mesma gravidade. A lei ainda prevê penalidades cumulativas ao responsável pelo hospital ou centro de saúde pelo descumprimento do dever de informação retromencionado, visando dar efetividade a medida.
Para ter acesso ao sistema de proteção e reparação pelo SUS, a vítima deve portar registro da ocorrência e o médico assistente deve elaborar um laudo, que deve ser encaminhado para autorização do procedimento.
Em julho de 2025, mais um caso de violência doméstica choca todo o país. Juliana Garcia dos Santos foi espancada pelo namorado no elevador do condomínio em Natal – Rio Grande do Norte, com mais de 60 socos no rosto. Conforme noticiado em diversos portais[2], a vítima passou por cirurgia de reconstrução facial no Hospital Universitário Onofre Lopes – HUOL, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, através do sistema de reparação ofertado pelo SUS para vítimas de violência doméstica.
Não obstante a previsão legal ao direito a reparação em decorrência de sequelas físicas ou estéticas para as vítimas de violência doméstica estar prevista no ordenamento jurídico desde 2015, ainda é comum interpor medidas judiciais para dar efetividade plena ao direito a reparação através da cirurgia reparadora.
Perceba no julgado abaixo, o Ministério Público interpôs Mandado de Segurança em face da negativa do direito líquido e certo de obter a reparação cirúrgica de vítima de violência, em face de omissão do Estado. Vejamos:
ADMINISTRATIVO. REALIZAÇÃO DE PROCEDIMENTO CIRÚRGICO. LESÕES DECORRENTES DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA. ATO OMISSIVO CONFIGURADO . DIREITO LÍQUIDO E CERTO DEMONSTRADO. RECURSO PROVIDO. SEGURANÇA CONCEDIDA.
I – O Ministério Público do Estado de Goiás impetrou mandado de segurança contra o Secretário de Saúde do Estado de Goiás objetivando a realização de procedimento cirúrgico à substituída, acometida de cegueira no olho direito, resultante de trauma grave sofrido em decorrência de agressões perpetradas em contexto de violência doméstica, que ocasionaram a perda do globo ocular e a desconstrução da cavidade orbitária . II – O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás denegou a ordem com fundamento na falta de prova pré-constituída que revele que o Secretário de Saúde do Estado de Goiás tenha negado a dispensação da cirurgia solicitada. III – As evidências documentais reunidas nos autos demonstram de plano a necessidade do procedimento cirúrgico pleiteado, bem como a omissão apontada. IV – Verifica-se que além da perda da visão, a vítima padece de baixa autoestima provocada pela perda do globo ocular, e vem enfrentando, desde as lesões sofridas, há mais de dois anos, uma sequência de omissões, caracterizadas pela mistura de burocracia e ausência de resposta pública a sua demanda, reiteradamente levada ao conhecimento dos órgãos de saúde. V – A circunstância narrada ostenta caráter prioritário de assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, cujo status de hipervulnerabilidade já foi reconhecido por esta Corte . Precedente: RHC 100446/MG, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, DJe 05/12/2018. VI – In casu, não cabe perquirir sobre a formalidade da negativa, que, em si e precisamente, qualifica e configura a abusividade da ilegalidade guerreada, na medida em que a demora em efetivar o tratamento de saúde vindicado representa a omissão combatida no presente mandado de segurança, havendo interesse, utilidade e urgência na concessão da ordem para compelir a autoridade a praticar o ato. VII – Os elementos constantes dos autos são admissíveis como prova constituída para fins de comprovação do direito líquido e certo capaz de impor ao Estado a realização do procedimento cirúrgico nos moldes reivindicados . VIII – Recurso ordinário em mandado de segurança provido para conceder a ordem.
(STJ – RMS: 68210 GO 2022/0011015-9, Data de Julgamento:
28/02/2023, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/03/2023)
O julgado datado de 2023 relata que a vítima já aguardava dois anos pela realização do procedimento, com a negativa reiterada pelos órgãos de saúde, notadamente revitimizada pelos órgãos estatais que violam todo o microssistema de proteção referente as vítimas de violência doméstica, o que, infelizmente, retrata a realidade do país.
Ademais, pode se questionar a legitimidade do Ministério Público para interpor ações cíveis relativamente as vítimas de violência doméstica. Nesse sentido, entende a 6ª Turma do STJ, que o artigo 25, da Lei nº 11.340/2006, Lei Maria da Penha, impõe a
legitimidade do Ministério Público para atuar também nas causas cíveis decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Nesse sentido, entende a 6ª Turma do STJ que a legitimidade do Ministério Público vai se vincular a disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos individuais em jogo. Em se tratando, então, das sequelas físicas ou estéticas da violência doméstica e familiar contra a mulher, o Ministério Público seria parte legítima para pleitear medidas cíveis, em virtude da indisponibilidade dos direitos individuais envolvidos na demanda. Vale a leitura do Acórdão do REsp 1.828.546[3].
Diante de tudo que foi analisado, verificamos que o microssistema da Lei Maria Maria da Penha, se integra com as normas que regem o SUS, para dar efetividade aos direitos de proteção e reparação as vítimas da violência doméstica e familiar contra as mulheres. O direito a reparação cirúrgica e o acesso prioritário ao sistema, dentre as pacientes de mesma gravidade retratam a integração das medidas que permeiam o microssistema.
Percebemos casos exitosos de acesso ao sistema em âmbito administrativo, em especial, quando possuem repercussão midiática, como o retromencionado; mas também, vítimas que aguardam por anos para poder ter acesso ao sistema reparador, mesmo após inúmeras solicitações administrativas não respondidas.
É de extrema importância a integração dos entes estatais, Advocacia, terceiro setor, mídias e de toda a sociedade para dar efetividade plena ao Direito de reparação as vítimas com sequelas físicas e estéticas decorrentes de violência doméstica e familiar contra as mulheres.
[1] https://justica-em-numeros.cnj.jus.br/painel-violencia-contra-mulher/ , acessado em 26/08/2025.
[2] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/nordeste/rn/mulher-espancada-com-60-socos-pelo-namorado-recebe-alta- apos-cirurgia/, acessado em 26/08/2025.
[3] https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?
documento_tipo=integra&documento_sequencial=207918054®istro_numero=201902192210&peticao_numero =&publicacao_data=20230915&formato=PDF, acessado em 26/08/2025.
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