mario canel isaac de souza

Não há ponte de ouro para a barbárie: A tentativa de feminicídio e os limites da desistência voluntária

Postado em 06 de agosto de 2025 Por Mário Canel e Isaac de Souza 

Mário Canel - Coronel da PMPE e professor de Direito Penal.

Isaac de Souza - Advogado e professor de Direito Constitucional.

1 INTRODUÇÃO

Um episódio ocorrido em Natal (RN) em julho de 2025 ganhou notoriedade nacional ao revelar, em imagens de câmeras de segurança, um homem desferindo mais de 60 socos contra o rosto da companheira dentro de um elevador. A agressão começou após o agressor visualizar mensagens no celular da vítima, o que desencadeou uma crise de ciúmes. Mesmo com a vítima caída, ele continuou a agredi-la e só parou quando moradores interferiram. O agressor foi preso em flagrante por tentativa de feminicídio; a vítima foi hospitalizada com fraturas faciais e precisou de cirurgia. Apesar da defesa ter alegado “surto claustrofóbico” e autismo, não existe respaldo jurídico para usar distúrbios neurológicos como causa de exclusão da culpabilidade ou licitude em condutas violentas dessa natureza.

O caso traz à tona o debate sobre a aplicação da desistência voluntária (art. 15 do Código Penal) em situações de violência doméstica e a relevância das recentes reformas legislativas que transformaram o feminicídio em crime autônomo. O objetivo deste artigo é examinar, à luz da lei e da jurisprudência, por que não há “ponte de ouro” para quem pratica condutas que exaurem o iter criminis e somente não consuma o crime por causas alheias à própria vontade.

2 A PONTE DE OURO E A DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA

O art. 15 do Código Penal prevê a desistência voluntária: o agente que, “voluntariamente desiste de prosseguir na execução” responde apenas pelos atos já praticados. A doutrina tradicional – inspirada na metáfora de Liszt da ponte de ouro – exige que a renúncia seja:
    1. Anterior à consumação do crime.
    2. Voluntária e eficaz, impedindo o resultado final.
    3. Resultante exclusivamente da vontade do agente, e não de circunstâncias externas ou de sua incapacidade de prosseguir.

Doutrinadores como Mirabete acentuam que a desistência voluntária inexiste quando a execução é interrompida por medo de flagrante, exaustão física, reação da vítima ou intervenção de terceiros. Nesses casos, o crime permanece na forma tentada e o autor responde de acordo com o art. 14, II, do Código Penal. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou esse entendimento ao afirmar que, para reconhecer a desistência voluntária, é imprescindível analisar o iter criminis e o elemento subjetivo da conduta, avaliando se a consumação deixou de ocorrer por circunstância inerente à vontade do agente.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) reforça que não se configura desistência voluntária quando o agente cessa a empreitada criminosa por circunstâncias alheias à sua vontade, como a reação da vítima ou a intervenção de terceiros. Em outra decisão, a corte ressaltou que não há desistência voluntária quando a potencialidade lesiva do golpe demonstra que o réu pretendia a consumação do crime.

No caso de Natal, a interrupção da conduta ocorreu porque vizinhos contiveram o agressor e porque ele se esgotou fisicamente, não por um arrependimento moral. Portanto, a alegação de desistência voluntária – a chamada “ponte de ouro” – é incompatível com a dinâmica fática observada.

3 O FEMINICÍDIO COMO CRIME AUTÔNOMO (LEI Nº 14.994/2024)

A Lei nº 14.994/2024, sancionada em 9 de outubro de 2024, promoveu profundas alterações no tratamento jurídico da violência contra a mulher. A principal mudança foi a criação do art. 121-A do Código Penal, que tipifica o feminicídio como crime autônomo:

Art. 121-A. Matar mulher por razões da condição do sexo feminino (feminicídio): pena de reclusão de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos.

Para configurar o feminicídio, a lei exige que o crime seja motivado por violência doméstica e familiar ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A nova pena mínima de 20 anos supera os limites anteriores (12 anos para homicídio qualificado). Além disso, a lei incluiu causas de aumento de pena que podem elevar a sanção em até metade, alcançando 60 anos de reclusão. As hipóteses incluem a prática durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto e a violação de medidas protetivas de urgência.

A reforma também ampliou as penas de lesão corporal (art. 129) quando motivada por questões de gênero e duplicou as penas de injúria, calúnia e difamação praticadas contra mulheres. Na Lei de Execução Penal, houve mudanças que dificultam a progressão de regime e proíbem visitas íntimas para condenados por crimes de violência contra a mulher. O feminicídio passou a constar expressamente no rol de crimes hediondos (Lei nº 8.072/1990).

4 A CONFIGURAÇÃO DA TENTATIVA DE FEMINICÍDIO

No episódio de Natal, a conduta do agressor se enquadra no conceito de crime tentado (art. 14, II, do Código Penal), pois houve início da execução, mas a consumação não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do agente. Os elementos que evidenciam a tentativa incluem:
    • Execução violenta reiterada: o agressor desferiu mais de 60 socos no rosto da companheira, visando região vital.
    • Motivação de gênero e contexto doméstico: as agressões ocorreram contra a companheira, no interior da residência, após crise de ciúmes e com histórico de violência prévia.
    • Interrupção por fatores externos: a ação só cessou porque vizinhos intervieram e porque o agressor se cansou fisicamente.
    • Dolo evidente: a intensidade e persistência dos golpes demonstram intenção de matar, incompatível com desistência voluntária.

Os tribunais têm reiterado que a desistência voluntária não se aplica quando a interrupção decorre da reação da vítima ou de terceiros. Assim, no caso analisado, a tese defensiva de “surto claustrofóbico” ou autismo não exclui o dolo nem diminui a responsabilidade penal. A responsabilidade do agente é agravada pela Lei nº 14.994/2024, que prevê pena de 20 a 40 anos para o feminicídio tentado (por analogia com a aplicação do art. 14, II), majorada conforme as circunstâncias do §2º do art. 121-A quando presentes.

5 DOLO, PROVA E PROXIMIDADE NA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Crimes praticados no contexto doméstico apresentam peculiaridades probatórias. A proximidade emocional entre agressor e vítima dificulta a denúncia e facilita a manipulação de narrativas. Por isso, o exame do dolo deve se basear na análise das circunstâncias objetivas: a intensidade das agressões, a escolha de regiões vitais e o uso continuado da força evidenciam a intenção de matar. A jurisprudência do STJ reforça que o reconhecimento da desistência voluntária exige a avaliação do iter criminis e do elemento subjetivo, tarefa vinculada ao arcabouço probatório.

No caso em estudo, as imagens do elevador constituem prova robusta de que a vítima estava impossibilitada de reagir e que o agressor persistiu nos golpes mesmo após derrubá-la. A prova testemunhal dos moradores e os registros médicos corroboram a tentativa de feminicídio. Não há nos autos indicação de desistência voluntária, mas sim interrupção por circunstâncias externas, conforme já analisado.

6 CONCLUSÃO

A tragédia ocorrida em Natal não é um episódio isolado, mas um reflexo da violência sistêmica contra a mulher. O Direito Penal brasileiro, especialmente após a Lei nº 14.994/2024, passou a tratar o feminicídio como crime autônomo, com penas severas e causas de aumento específicas. Esses avanços normativos visam combater a impunidade e responder à alarmante estatística de que, em 2023, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada seis horas no país.

No caso analisado, a alegação de “desistência voluntária” não encontra amparo, pois a interrupção do crime ocorreu por esgotamento físico e pela intervenção de terceiros, e não por renúncia espontânea. A jurisprudência do STJ e do TJDFT esclarece que a desistência voluntária exige análise do iter criminis e do elemento subjetivo, sendo inaplicável quando o agente somente deixa de prosseguir por circunstâncias alheias. A conduta do agressor configura tentativa de feminicídio, devendo ser punida nos termos do art. 121-A c/c art. 14, II, do Código Penal, sem a concessão da “ponte de ouro”.

A responsabilização penal, portanto, deve ser conduzida com equilíbrio, mas também com rigor técnico. A sociedade e o sistema de justiça não podem permitir que distúrbios psicológicos ou crises pontuais sejam usados como justificativas para atos de extrema violência. Para proteger as mulheres e reafirmar o Estado de Direito, é indispensável que casos como este sejam enquadrados corretamente e sancionados com a firmeza que a legislação estabelece.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Penal Brasileiro, atualizado pela Lei nº 14.994/2024.

CJ/ESTRATÉGIA CONCURSOS. A Lei nº 14.994/24 e o feminicídio como crime autônomo. Allan Joos, 11 out. 2024.

LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão. Tradução de José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1889.

MIRABETE, Julio F.; FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 34. ed. São Paulo: Atlas, 2019.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). AgRg no AREsp n.º 1.214.790/CE. Rel. Ministro Ribeiro Dantas. Quinta Turma. DJe 23/05/2018.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS (TJDFT). Acórdão n.º 1231211. 2.ª Turma Criminal. Rel. Jair Soares. Julgado em 13/02/2020.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS (TJDFT). Acórdão n.º 1243309. 3.ª Turma Criminal. Rel. Waldir Leôncio Lopes Júnior. Julgado em 16/04/2020.

UOL NOTÍCIAS. Igor Cabral deu mais de 60 socos na namorada após ter visto mensagens no celular dela. 30 jul. 2025. Disponível em: https://www.uol.com.br

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

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