Sergio da Silva Pessoa

Preta Gil: Uma herança de coragem para o Direito das minorias

Postado em 30 de julho de 2025 Por Sergio da Silva Pessoa Advogado, Professor Universitário, Mestrando em Sociologia, Conselheiro da Escola Superior da Advocacia (ESA-PE) e Presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB-PE.

A vida de Preta Gil foi, do início ao fim, um ato de resistência. Artista, mulher negra, gorda, bissexual e desbocada (no melhor dos sentidos), ela não apenas ocupou espaços — ela os expandiu. Ao falecer, Preta não nos deixou apenas saudade. Deixou um legado jurídico e social precioso: a lembrança de que o Direito precisa falar com todos os corpos, todas as vozes e todas as verdades.

Muitas vezes, figuras públicas são lembradas apenas por suas obras. No caso de Preta Gil, sua maior obra talvez tenha sido ela mesma. Seu corpo, sua imagem e sua voz serviram como instrumentos de denúncia, de afeto e de afirmação. Ao desafiar padrões e provocar debates públicos sobre racismo, gordofobia, sexualidade e etarismo, Preta tensionou estruturas jurídicas que permanecem conservadoras e excludentes.

Ela nunca se calou. Denunciou o racismo velado e explícito que enfrentou ao longo da carreira, enfrentou de frente a gordofobia e levantou a bandeira LGBTQIA+ em tempos nos quais a simples existência já era um ato político.

Sua trajetória nos convida a revisitar os fundamentos do Direito: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal), o princípio da igualdade (art. 5º, caput e incisos) e o pluralismo político (art. 1º, V). Esses valores precisam sair da letra fria da lei e encontrar tradução real na vida das pessoas. Preta Gil, com sua figura pública forte e afetuosa, tornou isso visível e urgente.

Seu legado é um lembrete contínuo de que o Direito não é neutro. Ele escolhe o que — e quem — protege. Preta, ao existir com tanta potência, obrigou o Direito e a sociedade a enxergar corpos que, por muito tempo, foram silenciados ou ocultados pela norma. O corpo como ato político: o que a jurisprudência ainda precisa aprender

É difícil mensurar o impacto de uma vida que gritou liberdade em tempos de censura moral. Preta Gil se colocou como sujeito de direitos. Seu corpo, que tanto sofreu ataques, virou também bandeira. Numa sociedade em que o padrão ainda dita quem tem acesso ao respeito, à saúde e à dignidade, Preta foi jurisprudência viva — e seu pós-morte reforça isso.

O racismo já é crime desde 1989 (Lei nº 7.716/89), mas a atuação do STF tem sido fundamental para consolidar sua gravidade. Em 2023, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a injúria racial também é crime de racismo, tornando-a inafiançável e imprescritível (HC 154248, rel. Min. Edson Fachin).

Na luta LGBTQIA+, outra decisão histórica veio em 2019, quando o STF decidiu que a LGBTfobia deve ser enquadrada na Lei do Racismo (ADO 26 e MI 4733). O Tribunal reconheceu que o Estado falhou ao não legislar sobre o tema e afirmou que a proteção contra a violência e a discriminação não pode mais esperar.

Preta Gil, ao se assumir bissexual e defender abertamente o amor em todas as formas, ajudou a tornar essas decisões mais próximas do cotidiano. Ao dar rosto a essas pautas, ela contribuiu para uma cultura jurídica mais plural.

Ela nos obriga a refletir: onde está o Direito quando corpos dissidentes são atacados nas redes sociais? Quando pessoas gordas são invisibilizadas nas políticas públicas? Quando o racismo ainda determina a expectativa de vida? O legado jurídico de Preta Gil reside justamente nessa provocação: o Direito precisa deixar de proteger apenas os iguais para, enfim, acolher os diferentes.

Um dos temas mais presentes na trajetória pública de Preta Gil foi o enfrentamento à gordofobia. Embora ainda não haja uma lei federal que tipifique a gordofobia como crime, existem projetos tramitando no Congresso que buscam preencher essa lacuna:

  • PL 2430/2022: propõe alterar a Lei do Racismo para incluir a discriminação por gordofobia como crime inafiançável e imprescritível.
  • PL 6263/2019: visa incluir o preconceito por características corporais como forma de discriminação passível de punição legal.

Preta Gil falava disso com leveza e firmeza: dizia que seu corpo não precisava de aprovação, mas de respeito. Ao exigir isso publicamente, levantava uma bandeira que o Direito ainda hesita em sustentar.

Criar leis que protejam contra a gordofobia, fortalecer políticas públicas de saúde inclusivas e promover representatividade nos tribunais — tudo isso é parte do que o legado de Preta pode inspirar. Sua vida e sua morte não devem ser tratadas como notas de rodapé na história. Elas são um chamado à atualização ética e moral do Direito.

A morte de Preta Gil nos obriga a pensar no direito à memória e à representatividade. Assim como discutimos a preservação da memória de vítimas de regimes autoritários ou de povos originários, também devemos cuidar da memória de quem representou, em vida, tantas lutas sociais. Isso é essencial para a construção de uma cidadania verdadeiramente antidiscriminatória, onde a história das minorias não seja apagada ou marginalizada.

Sua imagem, sua arte e sua voz devem continuar inspirando decisões jurídicas, políticas públicas e produções acadêmicas. Afinal, memória também é forma de reparação.

Preta Gil, presente nos futuros direitos

Se o Direito é um organismo vivo, ele precisa escutar os gritos da sociedade — e também suas músicas. A vida de Preta Gil foi um hino de liberdade, e sua morte não apagará o eco daquilo que ela defendeu: um mundo onde todos os corpos, amores e trajetórias caibam na norma jurídica.

Se hoje discutimos mais abertamente temas como racismo estrutural, diversidade sexual e inclusão corporal, é porque vozes como a dela abriram caminho. Que o seu legado ajude o Direito a fazer o mesmo.

A Constituição já nos indica qual é o caminho a ser seguido: dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade de expressão, direito à identidade. Mas princípios precisam de prática. E práticas precisam de exemplos. Preta Gil é — e continuará sendo — esse exemplo.

Que sua vida sirva de inspiração. Que sua morte nos sirva de alerta. Que seu legado siga afinando os ouvidos do Direito para as vozes que ainda insistem em ser ouvidas.

Viva Preta Gil.

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