Muito se tem falado sobre a necessidade de uma reforma tributária no Brasil. De fato, é inegável que o atual sistema é complexo, ineficiente e profundamente injusto. Mas a pergunta que precisa ser feita — e repetida — é: a quem essa reforma realmente serve?
O Brasil figura entre os países com maior carga tributária sobre o consumo. Isso significa, em termos práticos, que o trabalhador pobre paga proporcionalmente mais tributos que os milionários — afinal, a tributação sobre a renda e o patrimônio continua sendo baixa. Enquanto na Europa a alíquota média do imposto sobre heranças supera os 20%, aqui somos praticamente um paraíso fiscal para quem detém riqueza acumulada. Propriedades rurais gigantescas seguem subtributadas. Mas, ironicamente, o foco da reforma não está aí.
Com a Emenda Constitucional nº 132/2023, criou-se um novo modelo de tributação com o chamado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e um sistema de compensação para estados e municípios que venham a perder arrecadação. No papel, tudo parece técnico e razoável: criar tetos, corrigir valores pelo IPCA, usar médias históricas. Mas é exatamente aí que mora o problema — ou melhor, a injustiça.
Ao utilizar como referência a arrecadação dos anos de 2019 a 2026, ignora-se por completo que parte desse período foi assolada por uma pandemia global e, mais recentemente, por desastres climáticos extremos, como as enchentes no Rio Grande do Sul. Como esperar que municípios devastados mantenham médias de arrecadação semelhantes a períodos de normalidade? A resposta é simples: não vão conseguir.
Em Estrela (RS), por exemplo, conversei com o vice-prefeito Márcio Mallmann durante a Marcha dos Prefeitos em Brasília, que ocorreu dos dias 19 a 22 de maio. Ele relatou o cenário dramático enfrentado pela cidade e suas vizinhas: bairros inteiros destruídos, propriedades rurais arrasadas, e agora, a ameaça da gripe aviária pairando sobre a produção de aves — principal atividade econômica da região. Como manter a arrecadação nesses moldes? Como sobreviver?
Para piorar, são os próprios entes subnacionais que financiarão as compensações, com a retenção de 5% do IBS. Ou seja: municípios pobres ajudando a financiar outros ainda mais pobres, enquanto a União observa.
A realidade é que muitos estados aumentaram suas alíquotas de ICMS durante o período de referência, como estratégia para inflar as médias. Os municípios, por sua vez, ficaram para trás — por falta de informação, estrutura ou mesmo vontade política. Agora, pagarão o preço da omissão. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a alíquota-base do ICMS permaneceu em 17,5%, enquanto estados como Pernambuco trabalham com 20,5%. E isso faz toda a diferença para o futuro. Além disso, a ideia de que a economia local deve se adaptar a uma “vocação natural” é perigosa e simplista. Não existe vocação espontânea. Ela é construída socialmente, politicamente incentivada — ou negligenciada. O Brasil investe bilhões em incentivos à Zona Franca de Manaus, mas abandona municípios do Sul, do Sertão ou da Zona da Mata quando enfrentam catástrofes.
A isenção de produtos da cesta básica também parece benéfica, mas na prática atinge em cheio os municípios produtores de alimentos, que deixam de arrecadar com a comercialização desses bens. O que é um alívio para o consumidor final torna-se um fardo para quem depende do ICMS sobre a produção agrícola. Nem tudo que parece justo é, de fato, justo para todos.
É preciso reconhecer que a Reforma Tributária foi desenhada com foco na uniformidade, mas num país do tamanho de um continente. Esqueceram-se das peculiaridades regionais, das vulnerabilidades locais, dos dramas ambientais. A CNM (Confederação Nacional dos Municípios) e a FNP (Frente Nacional dos Prefeitos) tampouco se colocaram como verdadeiras defensoras dos pequenos. Assistimos a painéis que “explicam” a reforma, mas não a debatem de fato. Explicar é diferente de defender.
A solução não é simples. Mas ela precisa começar pela honestidade: precisamos admitir que a reforma, tal como está, vai penalizar os mais frágeis. Vai acentuar desigualdades, comprometer a reconstrução de municípios inteiros e ameaçar a resiliência financeira de quem já vive no limite.
Ao final, deixo cinco pontos de reflexão — e de alerta:
• O custo das complementações de receita será pago por estados e municípios, não pela União.
• Não há previsão legal que contemple situações excepcionais como pandemias ou desastres climáticos.
• Municípios com baixa arrecadação e alíquotas reduzidas sairão em de vantagem na fixação do novo padrão.
• A isenção do IBS sobre alimentos e a arrecadação no destino vão prejudicar especialmente os pequenos produtores e municípios agrícolas.
• As entidades representativas falharam em garantir a defesa efetiva dos interesses municipais.
Não podemos avaliar uma reforma só pelos interesses do mercado, da indústria ou do comércio exterior. O único critério legítimo é este: ela é boa para a sociedade brasileira como um todo? E, no momento, a resposta ainda é um preocupante não.
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