1 INTRODUÇÃO
A economia digital impôs transformações profundas no modo de criação, circulação e custódia dos bens. No contexto da chamada “Web3” e dos criptoativos, verifica-se uma nova configuração patrimonial: ativos puramente digitais, criptografados, muitas vezes em propriedade exclusiva do titular por meio de chaves privadas e sem intermediário fiduciário. Esse cenário desafia o direito das sucessões, tradicionalmente embasado no patrimônio como conjunto de bens, direitos e obrigações transmitidos aos herdeiros ou legatários com a morte do titular (art. 1.784 e seguintes do Código Civil – CC).
No Brasil, a lacuna normativa acerca da “herança digital” e da sucessão de criptoativos revela-se particularmente grave: há reconhecimento doutrinário de que tais bens são suscetíveis de transmissão, mas a operacionalização esbarra em obstáculos técnicos e na ausência de previsão legal específica. Por exemplo, embora a Instrução Normativa nº 1.888/2019 da Receita Federal do Brasil defina “criptoativo” como “representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta que pode ser utilizada como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços” (art. 5º, I).
Todavia, não há norma sucessória que discipline expressamente seu tratamento. Como alertam estudiosos, “o Brasil vive um ‘vazio’ jurídico que pode afetar milhares de investidores de criptoativos, pois sem regras claras, esses bens podem simplesmente desaparecer no universo das exchanges ou wallets de autocustódia”.
Diante desse panorama, a questão central deste artigo é: sob que condições os criptoativos podem ser transmitidos aos herdeiros segundo o direito civil brasileiro, e quais os limites e a intervenção estatal possível, especialmente quando os ativos estão em cold wallets sem acesso ao titular? Propõe-se como hipótese que, embora juridicamente os criptoativos possam ser reconhecidos como bens sucessíveis, a ausência de mecanismos práticos de acesso e da previsão normativa específica resulta em uma impossibilidade fática de transferência, podendo o Estado não ter meios de compelição para recuperação em muitos casos.
Na sequência, examinam-se: (i) a natureza jurídica dos criptoativos no direito civil; (ii) o instituto da sucessão digital e seu marco normativo no Brasil; (iii) os desafios tecnológicos à transmissibilidade patrimonial; (iv) o papel e os limites da intervenção estatal; e (v) possíveis propostas normativas e contratuais para preenchimento da lacuna.
Este trabalho adota metodologia jurídico-dogmática, com análise de doutrina, legislação, jurisprudência e relatórios técnico-jurídicos, bem como caráter exploratório e comparativo.
2 CRIPTOATIVOS E O DIREITO CIVIL
Para compreender a transmissibilidade dos criptoativos, é preciso primeiro qualificá-los juridicamente no âmbito do direito privado. A definição da IN 1.888/2019, já citada, revela seu caráter patrimonial. No âmbito doutrinário, entende-se que os criptoativos possuem valor econômico e são passíveis de figurar no patrimônio dos indivíduos. Por exemplo: “a transmissibilidade das criptomoedas ressalta a complexidade interdisciplinar inerente a esses criptoativos”.
No direito civil brasileiro, bens suscetíveis de apropriação e transmissão são matéria de tutela normativa: o art. 79 do CC define coisa como bem corpóreo ou incorpóreo suscetível de apropriação. Alguns autores consideram os criptoativos como bens incorpóreos, digitais, mas dotados de valor econômico que os torna aptos à sucessão. Vejamos: “o presente estudo apresentará como os atuais institutos estão, apesar da necessidade de modernização, aptos a lidar com os desafios emergentes da nova tecnologia”.
Por outro lado, há que se ponderar que a natureza descentralizada, a custódia privada por chave criptográfica e a inexistência de intermediário formal desafiam princípios clássicos como a individualização e a possibilidade de localização do bem. Ainda assim, do ponto de vista dogmático, parece viável concluir que os criptoativos podem ser bens móveis ou direitos adquiridos, suscetíveis de composição do patrimônio e, portanto, de transmissão causa mortis. Consequentemente, abre-se caminho para afirmar que o patrimônio digital, inclusive com criptoativos, integra o objeto da sucessão hereditária, salvo disposição em contrário.
3 SUCESSÃO DIGITAL E O ORDENAMENTO BRASILEIRO
A sucessão causa mortis caracteriza-se pela transmissão automática, em razão da morte, da totalidade ou quota que compõe o patrimônio do de cujus aos herdeiros ou legatários (art. 1.784 e seguintes, CC). Tendo em vista que os criptoativos constituem patrimônio, torna-se necessário verificar se o ordenamento brasileiro reconhece expressamente sua transmissão.
Em doutrina recente, observa-se que ainda não existe lei específica que discipline a herança digital no Brasil: “o Brasil vive um ‘vazio’ jurídico … Hoje, não existe lei específica sobre herança digital, e isso coloca em risco a sucessão de Bitcoins e outras criptomoedas”. Por outro lado, se admite que “não há obscuridade em relação à transmissibilidade das criptomoedas, pois o caráter patrimonial” está presente. Alguns dispositivos legais podem ser invocados para dar cobertura à sucessão digital: por exemplo, o art. 1.784, § 1º, CC (que admite disposições por testamento) e o art. 1.792, que trata da aceitação dos bens. No entanto, tais normas não contemplam especificamente ativos digitais.
Na jurisprudência e na prática forense, começam a surgir decisões que reconhecem procedimento de “inventariante digital” para acesso a bens armazenados em computador ou em ambiente digital do falecido. Por exemplo, matéria publicada relata que “a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça criou um procedimento judicial para acessar os bens digitais armazenados no computador de uma pessoa falecida” (artigo de 2025).
Ademais, o planejamento sucessório revela-se essencial para os criptoativos: “o titular documente claramente como um terceiro pode acessar seus criptoativos em caso de ausência ou incapacidade”.
Portanto, embora a transmissão seja possível, há lacunas relevantes no ordenamento brasileiro: deficiência normativa, ausência de padronização de acesso aos ativos digitais e omissão legislativa específica. Isso fragiliza a efetividade da sucessão digital.
4 O DESAFIO TÉCNICO DAS COLD WALLETS E O ACESSO AOS ATIVOS
Mesmo que se reconheça a transmissibilidade jurídica, a viabilidade prática da sucessão de criptoativos enfrenta obstáculos tecnológicos que podem tornar o bem “intransmissível” em termos fáticos. Os principais desafios são:
4.1 Custódia e chaves privadas – Em carteiras do tipo “cold wallet”, o titular detém as chaves privadas e o acesso apenas a partir dessas chaves. Sem que a chave seja revelada ou transmitida, os herdeiros ficam impossibilitados de acesso, independentemente da existência de título jurídico. Conforme registro: “ao contrário da conta bancária, o Bitcoin e outros criptoativos só podem ser acessados por quem controla as chaves privadas. Sem as chaves, não há acesso, nem com ordem judicial”.
4.2 Ausência de intermediário e descentralização – Se o ativo está em custódia exclusiva do titular, sem exchange ou infraestrutura que registre titularidade em nome de terceiros, a recuperação torna-se praticamente inviável. Além disso, algumas plataformas de autocustódia não têm obrigação de prestar contas ou evidências à sucessão judicial.
4.3 Risco de “bem perdido” – Em reportagem especial afirma-se que “sem regras claras, esses bens podem simplesmente desaparecer … ou então, um parente mais próximo que tenha acesso à wallet, senhas ou computador, pode acabar ‘se apossando’ de tudo, deixando os demais herdeiros sem nada”.
4.4 Procedimento inventariante digital – A criação desse procedimento, embora ainda incipiente, mostra o reconhecimento da necessidade de acesso técnico aos ativos digitais.
Esses entraves técnicos transformam o que seria juridicamente transmissível em fenômeno de difícil operacionalização, implicando uma sorte de limbo patrimonial ou até “extinção” prática do bem em razão da morte do titular sem deixar chave ou instruções. Isso reforça a hipótese de que, embora a sucessão seja prevista, a transferência pode falhar por inviabilidade técnica.
5 O PAPEL (E OS LIMITES) DA INTERVENÇÃO ESTATAL
Considerando a natureza descentralizada dos criptoativos e os obstáculos tecnológicos à sucessão, surge a questão da intervenção estatal — seja para medição da transmissão, seja para eventual recolhimento ao erário em ausência de herdeiros. Alguns pontos merecem atenção:
5.1 Competência estatal e natureza do bem – Se reconhecidos como bens suscetíveis à sucessão, os criptoativos entram na massa hereditária, sujeitos ao inventário e partilha, sob tutela do Estado-juiz. Contudo, sem mecanismo de localização ou acesso técnico, o Estado não encontra meios de efetivar o procedimento. A reportagem da Cointelegraph observa que “o governo pode ter acesso” é limitado tecnicamente e a ausência de regulação específica agrava a situação.
5.2 Penhora, bloqueio e recuperação judicial de criptoativos – Em outras áreas correlatas, já se admite a penhora ou bloqueio de criptoativos depositados em exchanges brasileiras via ordens judiciais. Embora isso refira-se mais ao direito de execução, indica o crescente alcance estatal. Ainda assim, se o bem está em autocustódia (cold wallet), o Estado fica praticamente sem instrumento.
5.3 Estado como herdeiro na ausência de sucessores – Em teoria, se não houver herdeiros nem legatários, o patrimônio vacante pode reverter ao Estado (art. 1.795, CC). No entanto, para os criptoativos, uma vez que não há acesso aos registros ou chaves privadas, verifica-se uma impossibilidade técnica de execução dessa destinação.
5.4 Limites constitucionais e de propriedade – O direito à propriedade (art. 5º, XXII, CF/88) e a segurança jurídica impõem limites à intervenção estatal. Obrigá-lo a requisitar chaves privadas ou promover mecanismos invasivos pode incidir em violação da inviolabilidade de domicílio ou do sigilo da correspondência, dependendo do caso.
5.5 Alternativas contratuais e plano sucessório digital – Em face das limitações estatais, o planejamento sucessório ganha relevância: disposição testamentária que indique chaves ou custódia, contratos de confiança digital, seguro ou custódia especializada. Tal prática, embora não suprima a lacuna normativa, mitiga o risco de inacessibilidade. Como observado: “o titular documente claramente como um terceiro pode acessar seus criptoativos”.
Dessa forma, conclui-se que o Estado, embora de direito apto a intervir na sucessão de tais bens, encontra severos limites técnicos, constitucionais e operacionais para fazê-lo de fato.
6 PERSPECTIVAS FUTURAS E PROPOSTAS NORMATIVAS
Diante das lacunas identificadas, impõe-se a necessidade de evolução normativa e contratual. Algumas propostas emergem:
6.1 Alteração legislativa específica – Por exemplo, o Projeto de Lei 4/2025 (ou PL 4066/2025) propõe alterar o Livro V do Código Civil para incluir a sucessão de bens digitais e criar a figura do “inventariante digital”. Essa iniciativa, se aprovada, dotará o ordenamento de previsão específica.
6.2 Registro ou inventário digital orientado – A instituição de mecanismo que permita o titular declarar criptoativos e indicar custodiante/executor digital, sem necessariamente violar a custódia privada. O registro, porém, deve respeitar privacidade e segurança.
6.3 Cláusulas contratuais patrimoniais digitais – Inserção em testamento ou em repertório digital de informações sobre localização e gestão de chaves privadas; uso de instrumentos fiduciários digitais ou seguro específico.
6.4 Educação e boas práticas – Incentivo à adoção de planejamento sucessório digital por titulares de criptoativos, com orientação técnica para acesso pós-falecimento. Como assinalado: “quase 90% dos investidores em criptomoedas se preocupavam com o que aconteceria… apenas 23% possuíam planejamento sucessório”.
6.5 Harmonização internacional – Considerando a natureza global dos criptoativos, a uniformização de regras transnacionais (como a EU MiCA) pode servir de referência.
Assim, a combinação de regulação estatal, inovação contratural e educação progressiva poderá adequar o direito das sucessões à era digital.
CONCLUSÃO
O presente estudo demonstrou que, sob o prisma do direito civil, os criptoativos apresentam condição apta à sucessão hereditária, na medida em que se constituem bens patrimoniais dotados de valor econômico. Todavia, a transmissibilidade prática enfrenta obstáculos tecnológicos, especialmente quando se trata de cold wallets e da impossibilidade de acesso às chaves privadas pelos herdeiros ou pelo Estado.
Na ausência de previsão normativa específica e de mecanismos técnicos eficazes, há o risco real de que esses ativos “se percam” e não integrem o patrimônio hereditário. A intervenção estatal, embora dotada de fundamento jurídico (art. 1.795 CC, competência do Estado-herdeiro), revela-se limitada por dificuldades operacionais, descentralização, autonomia privada e proteção constitucional da propriedade.
Em contrapartida, o planejamento sucessório digital e a reformulação normativa parecem se impor como vias essenciais para garantir que a herança digital não se converta em patrimônio inacessível.
Dessa forma, conclui-se que o direito das sucessões enfrenta desafio de transformação: não se trata apenas de adaptar conceitos tradicionais, mas de repensar o instituto da transmissão patrimonial diante da descentralização digital, garantindo que o ordenamento civil assegure a continuidade do patrimônio e a proteção dos herdeiros, sem abdicar da inovação tecnológica.
REFERÊNCIAS
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PUCHTA, Guilherme Vargas; CONSALTER, Zilda Mara. Herança de criptoativos e moedas digitais: proteção de dados e desafios para a sucessão. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 19, n. 114, p. 111-137, maio/jun. 2023.
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