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Tarifa zero e o colapso tarifário: o que está em jogo no transporte brasileiro

Postado em 11 de junho de 2025 Por Delmiro Dantas Campos Neto Advogado

A proposta de Tarifa Zero integral nos ônibus de Belo Horizonte, noticiada pelo Jornal do Commercio (10.06.2025), somada ao editorial contundente sobre o colapso do transporte coletivo na Região Metropolitana do Recife, impõe uma reflexão nacional sobre mobilidade urbana. Não apenas pela comparação entre dois modelos de gestão e duas realidades urbanas distintas, mas porque o tema mobilidade revela hoje, talvez como nunca, as fragilidades da estrutura federativa brasileira.

Essas reflexões, aliás, têm me inquietado nos últimos dias, especialmente após uma instigante aula do advogado e professor Luciano Timm no curso de mestrado do IDP, onde discutimos com profundidade as conexões entre direito, economia e pragmatismo jurídico. É cada vez mais claro que o transporte coletivo no Brasil não pode mais ser tratado apenas como um serviço público, mas como um elemento estrutural da cidadania econômica, da inclusão social e da racionalidade orçamentária do Estado.

Não é a primeira vez que as tarifas do transporte público ocupam o centro do debate político e social brasileiro. Em 2013, foram justamente os reajustes das tarifas que desencadearam as chamadas Jornadas de Junho, com milhões de brasileiros nas ruas exigindo não apenas redução de preços, mas mais qualidade, dignidade e transparência. O episódio marcou uma virada de percepção sobre o transporte coletivo como direito fundamental. Um ano depois, em 2014, o então candidato à Presidência da República Eduardo Campos, pernambucano, incluiu no seu plano de governo o Programa Passe Livre Estudantil, uma tentativa concreta de nacionalizar o debate sobre gratuidades e inclusão pela mobilidade.

O Brasil vive hoje um momento de discussão altiva no Congresso Nacional sobre a criação de novos tributos e o controle de gastos públicos. No entanto, no meio desse debate orçamentário, quase nada se fala sobre o custo-benefício das políticas tarifárias no transporte coletivo brasileiro. Enquanto se busca apertar o cinto das despesas públicas, ignora-se a urgência de uma regulação tarifária nacional. Ficamos à mercê de políticas municipais ou estaduais, muitas vezes incompatíveis entre si, marcadas por distorções regionais e rivalidades político-institucionais que se sobrepõem ao interesse coletivo.

Enquanto o editorial do JC escancara a dor diária do usuário da RMR, privado de um transporte urbano minimamente eficaz, a matéria de Belo Horizonte projeta esperança — ainda que ousada — de um alívio financeiro concreto para o usuário. A ideia de gratuidade total no transporte coletivo urbano, com financiamento público integral, não é nova, mas volta ao debate com força renovada à medida que o modelo atual implode diante da falta de subsídios estruturais.

No caso do transporte urbano, a situação é crítica. A grande maioria das cidades brasileiras agoniza com um sistema metroviário sucateado e uma frota de ônibus envelhecida, reduzida, insegura e visivelmente deteriorada. Isso empurra a população para meios alternativos e informais: motocicletas, carros por aplicativo e transporte clandestino. A consequência direta é o agravamento do caos urbano, o aumento da poluição, a sobrecarga hospitalar com acidentes de trânsito e a ampliação das desigualdades sociais.

Esse fenômeno, na verdade, não é novo. Há quase duas décadas, assistimos ao surgimento desorganizado e até marginalizado dos motoboys nas grandes cidades. Hoje, os motociclistas estão regulamentados em quase todos os municípios brasileiros e integram o ecossistema urbano com base em legislações locais e fiscalização pública. O que nos mostra que o transporte informal exige a mão forte da regulação. E que onde o poder público se ausenta, o improviso ocupa espaço.

O mesmo se aplica ao transporte rodoviário intermunicipal e interestadual. Vivemos uma era de desertificação de licitações, colapsos contratuais por ausência de reequilíbrio econômico-financeiro e empobrecimento das operadoras. As empresas deixam de renovar frotas, dispensam mão de obra qualificada e, sem condições mínimas de sustentabilidade, não concorrem. O transporte se esvai.

Na aviação, o quadro é igualmente alarmante e consoante está sendo publicizado, diante da retração do setor e da possível fusão de grandes companhias, o Governo Federal e o Consórcio Nordeste passaram a discutir a criação de uma companhia aérea pública dedicada à integração entre os estados nordestinos. A proposta aponta para a mesma constatação das matérias do JC: sem incentivo fiscal, financiamento público e cooperação institucional entre entes federativos, o transporte no Brasil não se sustenta — ainda que a aviação, por definição legal, não configure serviço público em sentido estrito, mas sim atividade econômica em regime de livre iniciativa, sujeita à regulação setorial.

Já o projeto de Tarifa Zero em Belo Horizonte, embora inovador, merece atenção especial. A proposta prevê que os empregadores arquem com uma taxa pela simples disponibilização do transporte público, inspirada em modelo francês. À primeira vista, trata-se de uma ideia interessante para financiar o sistema com justiça social. No entanto, surgem dúvidas jurídicas importantes: a taxa pode ser confundida com um imposto disfarçado, já que o serviço não é prestado de forma individualizada, não permite medir o benefício direto para cada empresa e usa como base de cálculo o custo total do sistema — o que não atende às regras da Constituição sobre esse tipo de cobrança.

O avanço da Tarifa Zero, por sua vez, se dá de forma desigual no território nacional. Enquanto 21% dos municípios do estado do Rio de Janeiro já adotaram o modelo, São Paulo alcança apenas 7% e Minas Gerais 4%. Essa disparidade escancara a necessidade de um marco normativo nacional que equalize oportunidades e crie critérios mínimos de planejamento e financiamento para a mobilidade urbana.

Além disso, experiências recentes apontam que a gratuidade, por si só, não resolve o problema da mobilidade. Em municípios como Japeri (RJ), a oferta de ônibus gratuitos é acompanhada de queixas sobre baixa frequência, superlotação e ausência de planejamento. O risco é claro: políticas sem expansão real de oferta e qualidade tendem a gerar frustração, não inclusão.

A sustentabilidade financeira também exige atenção. Maricá (RJ), por exemplo, mantém o serviço gratuito desde 2014 com apoio dos royalties do petróleo. Já Duque de Caxias gasta R$ 1,6 milhão por mês para garantir a gratuidade — um montante que impacta diretamente os orçamentos municipais. A depender da realidade fiscal local, sem criatividade e fontes permanentes de custeio, a gratuidade pode não sobreviver a uma mudança de governo ou a uma recessão.

A realidade é inescapável: sem dinheiro público, não há transporte coletivo viável no Brasil. Essa dependência não é um problema moral ou político, é uma constatação econômica. Países desenvolvidos também subsidiam transporte público por compreenderem seu papel como instrumento de justiça social, inclusão e desenvolvimento urbano.

A proposta de Belo Horizonte deve ser observada com atenção. Pode parecer estatizante, mas talvez seja apenas a forma de reconhecer o transporte como direito social fundamental. O futuro da mobilidade brasileira — e, com ele, a dignidade de milhões de cidadãos — está em jogo.

Escrevo com a experiência de quem advoga no setor há quase duas décadas. Conheci modelos empresariais e públicos que funcionaram. Testemunhei outros que fracassaram por ausência de políticas tarifárias coerentes. O que está em jogo não é apenas o transporte — é quem paga a conta.

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