O Brasil vive hoje um momento decisivo para consolidar seu avanço na transição energética. Enquanto o estado de São Paulo discute a modernização de uma rede de transmissão projetada nos anos 1970, o Nordeste enfrenta um desafio urgente e complexo: expandir, de forma robusta e coordenada, sua infraestrutura de transmissão para que a energia renovável produzida na região possa de fato impulsionar o desenvolvimento nacional.
São Paulo possui uma infraestrutura consolidada, que agora precisa ser otimizada para acomodar novas demandas, como data centers e eletromobilidade que garantirá a transição energética no polo industrial do país. Já o Nordeste construiu, ao longo das duas últimas décadas, uma matriz baseada em fontes limpas, descentralizadas e abundantes. No entanto, essa energia está sendo desperdiçada pela ausência de infraestrutura de transmissão adequada. É o que chamamos de “curtailment“: energia produzida, mas não escoada. Em 2024, as perdas ultrapassaram os R$ 2 bilhões.
E o cenário tende a se agravar. Segundo dados do ONS – Operador Nacional do Sistema, em julho de 2025, o Brasil registrou o maior volume histórico de curtailment para fontes eólicas e solares: 3,338 TWh deixaram de ser aproveitados, o que corresponde a 20,98% da geração total de 13,214 TWh. No Rio Grande do Norte, 28,53% da energia eólica gerada foi rejeitada. No Ceará, esse número chegou a 24,37% e, em Pernambuco, 14,54%. Na geração solar, os números são ainda mais impactantes: 49,42% de curtailment na Bahia, 39,58% em Pernambuco e 29,89% em Minas Gerais.
Esses dados escancaram um paradoxo: em um país com abundância de sol e vento, estamos rejeitando energia limpa, ao mesmo tempo em que o PLD horário atinge R$ 342,43/MWh e termelétricas, caras e poluentes, estão sendo despachadas em todos os submercados do SIN. Algo está estruturalmente errado.
Não se trata de um problema setorial. O curtailment é hoje uma barreira concreta à transição energética, à segurança energética nacional e ao desenvolvimento regional do Nordeste, que produz energia limpa em abundância. A configuração é estrategicamente equilibrada: aproximadamente um terço da geração vem de fontes hídricas, um terço de fontes eólicas e solares, e outro terço de fontes térmicas, garantindo firmeza ao sistema. Mas o sistema de transmissão não acompanhou a velocidade dessa transição.
A região, que já exporta energia para o restante do país, tem capacidade atual de 15.600 MW, podendo chegar a 20.500 MW até 2029. O crescimento, contudo, está em risco. A cada MWh desperdiçado, perde-se também um emprego, uma indústria, uma oportunidade de fixação de renda no interior. A transição energética deixa de ser inclusiva e justa.
A ausência de infraestrutura não apenas compromete o presente, como também desmobiliza o futuro. Fabricantes de torres e pás eólicas fecharam unidades no Nordeste. Não por falta de recurso natural, mas por incerteza regulatória e estagnação de novos projetos. As empresas já enfrentam curtailment de até 70% em alguns meses. O sinal ao investidor é claro: falta confiança.
Os investidores de Renovável classificaram o fenômeno como “inibidor” de investimentos devido à imprevisibilidade operacional e ausência de compensações adequadas. Do ponto de vista regulatório, esse cenário evidencia a urgência de revisão nos mecanismos que disciplinam a operação e a remuneração das usinas em contextos de restrição de despacho. A ausência de instrumentos que garantam sinal econômico ao gerador, seja por meio de compensações financeiras, seja por flexibilizações operativas temporárias autorizadas pela ANEEL, afasta investidores e compromete a viabilidade de novos empreendimentos. Em um setor que opera sob contratos de longo prazo, previsibilidade é sinônimo de segurança jurídica. Sem ela, o risco percebido se eleva e, com isso, o custo de capital.
O caso de Pernambuco é exemplar. O estado atua como fiel da balança do sistema elétrico nordestino, sendo simultaneamente consumidor e exportador de energia. Entretanto, sofre com gargalos de transmissão que, somados à elevação de custos regulatórios, ameaçam sua competitividade industrial. Some-se a isso a perda recente do seu parque industrial eólico, e temos um retrato claro das consequências de uma infraestrutura que não acompanha a dinâmica da transição.
Mais do que uma questão energética, estamos diante de um dilema de desenvolvimento nacional. Em pesquisa de minha autoria, publicada na revista Renewable Energy, foi realizada uma análise de política pública baseada na metodologia de diferenças em diferenças (diff-in-diff), comparando os municípios que receberam usinas renováveis do PROINFA com aqueles que não receberam na mesma região. Os resultados são contundentes: houve aumento de 10% na renda per capita dos municípios beneficiados, crescimento de 13,82% no número de trabalhadores formais e incremento de 0,39% na despesa de capital. Ou seja, a geração de energia renovável induzida por políticas públicas não apenas melhora indicadores energéticos, mas promove desenvolvimento econômico e social.
Esse dado empírico é fundamental para compreendermos que o Nordeste não é apenas um “celeiro” de energia limpa, mas um polo de potencial transformação socioeconômica. Negar a infraestrutura necessária à transmissão é negar ao Nordeste a chance de superar o histórico ciclo de desigualdade regional. O PROINFA mostrou que é possível transformar energia em prosperidade. Agora, é preciso garantir que essa energia chegue aos centros de consumo.
As soluções estão postas: expansão maciça da malha de transmissão, instalação de sistemas especiais de proteção, revisão dos modelos regulatórios e incentivo à atração de grandes consumidores para a região. Também é urgente investir em armazenamento, BESS (Battery Energy Storage Systems). O armazenamento é peça-chave para reduzir o curtailment e dar maior flexibilidade ao sistema, principalmente em cenários de alta intermitência e congestionamento da rede. O Brasil precisa tratar essas tecnologias como prioridade estratégica e acelerar os próximos leilões, aclarar a regulamentação e financiamento, neste momento de investimentos.
O paralelo que traço com São Paulo, ao observar dados em artigo recente publicado na Exame, é pertinente por denotar a necessidade de planejamentos distintos para o avanço da transição energética. O estado representa hoje o maior centro consumidor de energia do país, com crescente demanda impulsionada por eletromobilidade, digitalização, industrialização e urbanização intensiva. Sua rede consolidada exige modernização para comportar fontes renováveis e usos energéticos mais dinâmicos. A modernização da rede paulista é, portanto, estratégica.
Por outro lado, a expansão da rede nordestina é existencial. Não se trata de adaptar o que já existe, mas de construir novas redes, com base em diagnósticos prospectivos e planos estruturantes. Iniciativas como o estudo de expansão da margem de conexão para geração e cargas na Rede Básica, liderado pelo SINDIENERGIA/PE, com o apoio da Aperenovaveis, Setor produtivo, Sistema FIEPE e Governo do Estado de PE, mostram o caminho: é preciso articular planejamento técnico, coordenação institucional e visão de futuro para garantir a continuidade de um modelo energético que já se mostrou eficiente, justo e transformador.
A urgência não é do Nordeste. É do Brasil. Atender às necessidades do Sudeste, especialmente de São Paulo, centro financeiro e industrial do país, é vital para sustentar o crescimento urbano e tecnológico brasileiro. Da mesma forma, garantir o escoamento da energia limpa produzida no Nordeste representa uma oportunidade histórica de corrigir desequilíbrios regionais e promover uma integração energética verdadeiramente nacional.
A transição energética, se conduzida com inteligência e equidade, pode romper barreiras estruturais, redistribuir oportunidades e posicionar o Brasil em um novo patamar de desenvolvimento. Um país que consegue integrar suas regiões com eficiência, respeitando suas vocações e aproveitando o potencial de cada uma, conquista não apenas segurança energética, mas também um avanço socioeconômico que redefine sua posição no mundo. Trata-se, portanto, de um movimento transformador, capaz de abrir caminhos de igualdade e prosperidade até então inimagináveis
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