Em 11 de agosto de 1827, a criação dos cursos jurídicos em São Paulo e Olinda rompeu uma barreira estratégica: a dependência de Portugal na formação de bacharéis. Ao internalizar essa formação, o Brasil garantiu autonomia para preparar quadros jurídicos alinhados à sua realidade institucional e política. Não era um projeto puramente acadêmico. O país precisava de profissionais capazes de sustentar juridicamente a administração pública, elaborar normas, interpretar o ordenamento e, sobretudo, implementar decisões estratégicas para um Estado recém-constituído.
Desde essa origem, a formação jurídica no Brasil não foi concebida como um fim em si mesma. O Direito sempre esteve a serviço de algo maior: a resolução de problemas concretos e a viabilização de resultados. É essa lógica que hoje, quase dois séculos depois, se traduz no papel do advogado como profissional multifuncional, integrado e de alta performance, operando no cruzamento entre o jurídico, o econômico, o político e o tecnológico.
Neste século, a relevância do advogado é medida por sua capacidade de gerar valor. Isso significa que o Direito é ferramenta de mercado no setor privado, para criar vantagem competitiva e proteger ativos; no setor público, para destravar investimentos e garantir eficiência institucional. Essa visão exige competências que ultrapassam o domínio técnico-jurídico: análise de risco, leitura de cenário, negociação, uso de dados e capacidade de dialogar com múltiplas áreas.
No Brasil, o programa de concessões e leilões de infraestrutura do Governo Federal é exemplo claro de como advogados assumem papel central na viabilização de projetos bilionários. A modelagem de concessões de rodovias, aeroportos e linhas de transmissão exige trabalho jurídico que vai muito além da minuta contratual. É preciso construir marcos regulatórios consistentes, alinhar exigências ambientais e sociais, mitigar riscos para atrair investidores e estruturar garantias. Advogados atuam lado a lado com economistas e engenheiros para entregar um pacote viável ao merca, sem esta conduta, o leilão fracassa.
Outro caso nacional é a implementação da LGPD. Empresas de todos os setores precisaram de assessoria jurídica não apenas para revisar contratos, mas para redesenhar fluxos de dados, criar protocolos internos, treinar equipes e investir em segurança cibernética. O advogado atuou como gestor de projeto, integrando TI, RH, marketing e alta administração para garantir conformidade regulatória e preservar a reputação da marca. Bancos e varejistas que se anteciparam, transformaram a adequação em diferencial competitivo.
Na esfera corporativa internacional, a compra da Whole Foods pela Amazon em 2017, avaliada em US$ 13,7 bilhões, mostra a dimensão dessa atuação. Equipes jurídicas trabalharam de forma integrada com finanças, logística e marketing para garantir a aprovação regulatória da operação nos Estados Unidos e em outros países. Não se tratou apenas de “cumprir a lei”, mas de antecipar possíveis objeções de órgãos antitruste, ajustar estratégias comerciais e viabilizar sinergias operacionais pós-aquisição. O sucesso dessa integração consolidou o movimento da Amazon no setor de varejo físico.
Outro exemplo internacional está no Acordo de Paris. Negociadores jurídicos representando países e blocos econômicos precisaram traduzir compromissos ambientais em obrigações claras, mensuráveis e aplicáveis. Para isso, atuaram no limite entre a diplomacia e a técnica jurídica, equilibrando interesses econômicos, ambientais e geopolíticos. O resultado foi um tratado que, embora fruto de concessões mútuas, criou um arcabouço normativo capaz de influenciar legislações nacionais e políticas corporativas de sustentabilidade em todo o mundo.
Voltando ao Brasil, casos de arbitragem no setor de energia elétrica mostram como o advogado deixou de ser apenas litigante para se tornar estrategista. Em disputas entre geradoras e distribuidoras sobre contratos de compra de energia, por exemplo, a vitória não se resume a ter razão jurídica, mas em construir uma solução que preserve a relação comercial, mantenha o fluxo financeiro e evite impactos sistêmicos no setor. Aqui, a habilidade de negociação e a compreensão dos aspectos regulatórios e econômicos são tão importantes quanto o fundamento jurídico.
Essa lógica também se aplica à advocacia de gestão de crises. Em 2019, o vazamento de óleo no litoral brasileiro exigiu resposta coordenada entre empresas, órgãos ambientais, governos estaduais e União. Advogados atuaram no mapeamento de responsabilidades, no alinhamento de comunicação com o público, na adequação de ações emergenciais às normas ambientais e na prevenção de litígios futuros. A eficiência da resposta jurídica teve impacto direto na mitigação de danos econômicos e reputacionais.
No plano internacional, a reestruturação da General Motors em 2009 é outro exemplo emblemático. Com a empresa à beira da falência, equipes jurídicas trabalharam com especialistas financeiros e gestores públicos para viabilizar o aporte bilionário do governo norte-americano, reorganizar contratos com fornecedores, ajustar acordos trabalhistas e lidar com ações judiciais de consumidores. A operação não foi apenas um caso de “salvar uma empresa”, mas de preservar uma cadeia produtiva e milhões de empregos.
Os casos apresentados demonstram a amplitude da atuação multidisciplinar do profissional jurídico, evidenciando como sua formação transcende as fronteiras tradicionais do Direito. Em cada situação, observa-se a aplicação simultânea de competências jurídicas, gerenciais, estratégicas e operacionais, que podem ser visivelmente identificadas.
Tabela 1 – Casos Práticos de Atuação Multidisciplinar Com Exemplos Nacionais e Internacionais.
| Contexto | Caso | Papel do Advogado | Competências Aplicadas | Resultado |
| Nacional | Leilões de Infraestrutura no Brasil | Estruturar concessões e PPPs para rodovias, aeroportos e transmissão de energia | • Regulação setorial • Análise de risco •Negociação multissetorial •Estruturação de garantias | Atração de investidores internacionais e fechamento de leilões com ágio elevado |
| Nacional | Implementação da LGPD | Liderar programa de adequação integrando jurídico, TI e marketing | •Compliance regulatório •Gestão de projetos • Proteção de dados •Comunicação corporativa | Conformidade regulatória, prevenção de multas e reforço da reputação corporativa |
| Nacional | Arbitragem no Setor Elétrico | Resolver disputa entre geradora e distribuidora mantendo relação contratual | •Arbitragem comercial •Mediação de conflitos •Análise econômico-regulatória •Relationship management | Preservação de contratos de longo prazo e estabilidade financeira setorial |
| Nacional | Gestão de Crise – Vazamento de Óleo (2019) | Coordenar resposta legal com órgãos ambientais e empresas afetadas | • Direito ambiental •Crisis management •Relações institucionais | Mitigação de danos econômicos e alinhamento com órgãos regulatórios |
| Internacional | Aquisição da Whole Foods pela Amazon (EUA) | Conduzir operação de US$ 13,7 bi e obter aprovação antitruste | •Direito concorrencial •Negociação internacional •Corporate integration • Regulatory affairs | Aprovação regulatória em múltiplas jurisdições e expansão para mercado físico |
| Internacional | Acordo de Paris (2015) | Traduzir compromissos ambientais em obrigações legais vinculantes | •Direito internacional •Negociação multilateral •Impact assessment •Policy implementation | Tratado global influenciando legislações nacionais e políticas corporativas ESG |
| Internacional | Reestruturação da General Motors (2009) | Viabilizar aporte estatal de US$ 50 bi e reorganização societária | • Direito societário • Direito trabalhista •Contract restructuring •Multi-stakeholder negotiation | Preservação de 1,2 milhão de empregos e manutenção da cadeia automotiva global |
Fonte – elaborado pela Autora.
Os casos apresentados evidenciam a amplitude da atuação multidisciplinar do profissional jurídico, mostrando como sua formação vai muito além das fronteiras tradicionais do Direito. Em cada exemplo, percebe-se a combinação simultânea de competências jurídicas, gerenciais, estratégicas e operacionais, com pensamento estratégico, visão sistêmica, gestão de projetos, coordenação de equipes, avaliação de riscos, análise de cenários complexos, habilidade de negociação em múltiplos níveis e domínio de inteligência regulatória. Esse conjunto de capacidades permite navegar em ambientes normativos desafiadores, tomar decisões sob pressão, lidar com crises e atuar em diferentes jurisdições, sem perder a clareza do objetivo final: entregar resultados sustentáveis para as organizações e para a sociedade.
A tradição multidisciplinar da formação jurídica brasileira, que remonta a 1827, segue produzindo profissionais capazes de agir como verdadeiros parceiros de negócios e gestores estratégicos em contextos de alta complexidade. O advogado relevante hoje não se limita a “ganhar causas”, mas entrega soluções que preservam ativos, destravam negócios e evitam perdas. Ele sabe que judicializar é apenas uma das rotas possíveis, nem sempre a mais eficiente, e entende com precisão quando o litígio é inevitável, quando a arbitragem é estratégica e quando a negociação é a solução mais inteligente.
Nesse mercado competitivo, a formação jurídica precisa gerar profissionais aptos a 1) ler e influenciar cenários regulatórios para antecipar tendências e criar vantagem de mercado, 2) integrar-se a equipes multidisciplinares para construir soluções juridicamente sólidas e economicamente viáveis, 3) avaliar o impacto jurídico por métricas de desempenho e 4) comunicar-se com clareza com públicos tão distintos quanto o conselho de administração e comunidades diretamente afetadas por projetos.
Não se trata de uma opção, mas em setores altamente regulados, como energia, telecomunicações, saúde e financeiro, quem não domina esse ecossistema se torna periférico e quem integra Direito, estratégia e operação se torna indispensável.
O futuro será ainda mais exigente. Inteligência artificial, mudanças climáticas, disputas regulatórias globais e novos modelos de negócios estão redefinindo a pauta jurídica. O advogado que se adapta, incorporando competências tecnológicas, econômicas e políticas, será protagonista das próximas décadas.
Os profissionais que prosperarão nesse cenário não serão apenas os que conhecem códigos e jurisprudência, mas aqueles capazes de traduzir complexidade legal em oportunidade de negócio, transformar riscos regulatórios em vantagens competitivas e converter conflitos em parcerias estratégicas.
O 11 de agosto, portanto, é mais do que uma comemoração histórica: é um marco que recorda que, desde sua criação, a formação jurídica brasileira foi pensada para produzir profissionais preparados para estar no centro das decisões. Hoje, isso significa advogados que transitam com fluidez entre normas e números, leis e métricas, princípios jurídicos e objetivos de negócio.
O Brasil, com sua tradição de formar juristas-gestores, está na vanguarda dessa revolução silenciosa que redefine a forma como o poder funciona no século XXI. E da próxima vez que surgir uma fusão bilionária, um leilão de infraestrutura ou uma grande crise corporativa, vale lembrar: por trás de cada movimento que molda a economia, há advogados brasileiros aplicando uma expertise forjada há quase duzentos anos, desde que Dom Pedro I decidiu que o país precisava de profissionais capazes de construir uma nação. Hoje, eles reconstroem o mundo, superando as barreiras de mercado e de linhas de conhecimento.
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