A recente controvérsia envolvendo a majoração da alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) por meio dos Decretos nºs 12.466, 12.467 e 12.499/2025 e sua posterior suspensão pelo Decreto Legislativo nº 176/2025, seguida da decisão cautelar (ADC 96 e ADIs 7827 e 7839) proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suscitou um debate técnico-jurídico essencial: é válida a cobrança retroativa do IOF no período de vigência dessas normas? O presente artigo busca analisar brevemente essa questão à luz dos princípios constitucionais tributários, da jurisprudência do STF e da recente manifestação da Receita Federal.
Ressalte-se, inicialmente, que o IOF é um tributo federal que incide sobre operações de crédito, câmbio, seguros e transações com títulos e valores mobiliários. Com natureza predominantemente extrafiscal, é utilizado como instrumento de regulação da política econômica, permitindo ao governo intervir no mercado financeiro por meio da alteração de suas alíquotas. Contudo, também possui função arrecadatória (fiscal), gerando receita para os cofres públicos. Sua previsão está no artigo 153, inciso V, da Constituição Federal de 1988, e em legislação específica (Lei Lei nº 5.143/1966 e Decreto nº 6.306/2007).
Feito esse preâmbulo, passa-se a analisar o contexto fático-jurídico. Na decisão cautelar proferida em 16 de julho de 2025, o Ministro Alexandre de Moraes entendeu que, embora os decretos presidenciais pudessem alterar alíquotas do IOF com base na função extrafiscal do tributo (art. 153, §1º, CF), extrapolaram sua competência ao inovar no campo do fato gerador, ao equiparar as operações de “risco sacado” a operações de crédito. Tal inovação foi considerada inconstitucional, pois invadiu matéria reservada à lei formal (art. 150, I, CF).
Diante disso, o Ministro Relator reajustou a medida cautelar: suspendeu apenas os dispositivos inovadores e restabeleceu os demais efeitos do Decreto nº 12.499/2025 com eficácia “ex tunc”, ou seja, desde sua edição. Importa destacar que, por se tratar de decisão monocrática em sede de controle concentrado de constitucionalidade, a medida cautelar concedida deverá ser submetida ao referendo do Plenário da Corte, conforme previsto no art. 21, V, do Regimento Interno do STF e na jurisprudência consolidada da Suprema Corte.
A norma, observe-se, ficou formalmente suspensa por 12 (doze) dias corridos, entre 4 e 16 de julho de 2025. Durante esse período, o Supremo promoveu audiência de conciliação entre o Executivo, o Congresso Nacional e as demais partes processuais. No entanto, não houve acordo, sendo a controvérsia dirimida apenas após a comentada manifestação do relator.
Em resposta à citada decisão do ministro, a Receita Federal do Brasil publicou Nota Técnica, em 17 de julho de 2025, esclarecendo que as instituições financeiras e demais responsáveis tributários não estão obrigados a recolher retroativamente o IOF referente ao período em que a norma esteve suspensa pela decisão liminar.
Tal entendimento fundamenta-se no Parecer Normativo Cosit nº 1/2002, que dispõe que normas suspensas judicialmente não produzem efeitos durante o período de sua ineficácia. Portanto, não haveria base jurídica para exigir a cobrança retroativa do IOF, sob pena de afronta aos princípios da segurança jurídica e da não surpresa tributária.
A tentativa de cobrança retroativa do IOF violariaria pilares estruturantes do sistema tributário:
Legalidade Tributária (CF, art. 150, I): a instituição ou majoração de tributo exige lei em sentido estrito, não podendo ocorrer por ato infralegal que inove no fato gerador.
Segurança Jurídica e Boa-fé: a cobrança de tributos com base em norma ineficaz afrontaria a confiança legítima dos contribuintes.
Irretroatividade tributária (CF, art. 150, III, a): ainda que se restabeleça a eficácia de norma revogada ou suspensa, seus efeitos não podem retroagir, salvo expressa disposição legal.
A conjugação entre a decisão do STF e a manifestação da Receita Federal demonstra uma correta leitura dos limites constitucionais à atuação do Poder Executivo em matéria tributária. A tentativa de ampliar o campo de incidência do IOF sem amparo legal e exigir seu recolhimento retroativo afrontaria o pacto federativo e o devido processo legal tributário. Conforme estabelece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a reserva legal do fato gerador é cláusula pétrea, insuscetível de flexibilização mesmo diante de pretensões arrecadatórias estatais.
Assim, diante do reconhecimento da nulidade parcial do decreto e da manifestação da Receita Federal, afiguraria-se inviável – aparentemente – qualquer tentativa de autuação fiscal com base na cobrança retroativa do IOF durante o período de suspensão liminar. Tratar-se-ia de garantia mínima de previsibilidade e respeito ao contribuinte em um sistema tributário marcado pela complexidade.
No entanto, a nota da RFB e o parecer que a lastreou trazem uma sutileza: a distinção entre a responsabilidade das instituições financeiras (fontes pagadoras) e a potencial responsabilidade dos contribuintes. Enquanto o texto expressamente desobriga as instituições financeiras da cobrança retroativa do IOF no período de ineficácia das normas, ela adota uma postura mais cautelosa em relação aos contribuintes.
“A Receita Federal irá avaliar a situação em relação aos contribuintes e manifestar-se oportunamente, buscando evitar surpresa e insegurança jurídica na aplicação da lei”.
Essa formulação indica que, embora as instituições financeiras estejam protegidas pela interpretação da RFB baseada no Parecer Normativo Cosit nº 1/2002 (que desloca a responsabilidade para o contribuinte quando a fonte pagadora é impedida de reter por decisão judicial), a Receita Federal reserva-se o direito de, no futuro, analisar a situação individual dos contribuintes.
Isto levanta a possibilidade de que, para os contribuintes que se beneficiaram da não-cobrança do IOF durante o período de suspensão, a Receita Federal possa, eventualmente, buscar a cobrança do tributo, com base no princípio de que o imposto era devido e que a decisão final do STF restabeleceu a eficácia da norma (para as partes não suspensas) com efeitos ex tunc.
Essa abordagem da RFB reflete a complexidade das situações de suspensão judicial de tributos. A menção a “evitar surpresa e insegurança jurídica” sugere que a RFB está ciente do impacto que uma cobrança retroativa direta aos contribuintes poderia gerar e prefere uma análise mais detida antes de qualquer manifestação formal. Tal postura, embora prudente do ponto de vista da administração tributária, mantém uma incerteza para os contribuintes que, em tese, poderiam ser alvo de futuras autuações fiscais, caso a RFB decida pela exigibilidade do IOF não recolhido no período de suspensão.
Diante desse cenário, embora a decisão do STF e a Nota Técnica da Receita Federal tenham afastado a responsabilidade das instituições financeiras quanto à cobrança retroativa do IOF durante o período de suspensão, permanece uma zona de incerteza em relação aos contribuintes finais. A postura cautelosa da administração tributária, ao sinalizar uma futura análise caso a caso, exige atenção e prudência.
Nesse contexto, espera-se da RFB uma conduta alinhada aos princípios constitucionais da legalidade, da segurança jurídica e da boa-fé, assegurando que nenhum contribuinte seja surpreendido por exigências incompatíveis com o devido processo legal. A consolidação do entendimento de que não há espaço para exigência retroativa – nem mesmo dos contribuintes finais – representaria coerência com o teor geral do Parecer Normativo Cosit nº 1/2002 e, sobretudo, compromisso institucional com a previsibilidade e o respeito aos direitos dos cidadãos em um sistema tributário já suficientemente complexo.
Ainda, considerando o impacto econômico e jurídico decorrente da suspensão parcial dos decretos que majoraram o IOF, revela-se pertinente refletir sobre a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, ao julgar definitivamente o mérito das ações, exercer a prerrogativa de modular os efeitos de sua decisão. Tal faculdade, prevista no art. 27 da Lei nº 9.868/1999, permite que a Corte, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social, delimite os efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade. Em hipóteses semelhantes, o STF tem admitido a modulação para evitar efeitos retroativos que possam comprometer a estabilidade das relações jurídicas tributárias já consolidadas, protegendo tanto a Administração Pública quanto os contribuintes de surpresas fiscais indevidas. Assim, eventual modulação – seja para restringir ou diferir os efeitos da decisão – poderá mitigar a insegurança atualmente vivenciada, especialmente quanto à responsabilidade dos contribuintes finais pela eventual cobrança do IOF no período de suspensão normativa.
Ademais, merece destaque o disposto no § 1º do art. 11 da Lei nº 9.868/1999, segundo o qual a medida cautelar concedida pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, possui eficácia erga omnes e, como regra, efeitos ex nunc – ou seja, não retroage. No entanto, o próprio dispositivo prevê a possibilidade de o Tribunal conferir eficácia retroativa (ex tunc) à medida, desde que assim delibere expressamente. Trata-se de exceção que exige fundamentação robusta, sobretudo diante dos princípios da segurança jurídica e da proteção à confiança legítima dos administrados. No caso específico da majoração do IOF, a decisão monocrática do Ministro Alexandre de Moraes atribuiu, como dito, efeitos ex tunc à suspensão parcial dos decretos, restabelecendo a eficácia da norma originária desde sua edição, o que, embora juridicamente possível, reforça a importância de uma análise colegiada e da eventual modulação futura dos efeitos, a fim de preservar a estabilidade das relações tributárias e evitar a imposição de encargos retroativos aos contribuintes.
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