Isabelle Cristhyne Mendes Feliciano

A balança inclinada: Os desafios das mulheres negras no Direito Brasileiro

Postado em 22 de outubro de 2025 Por Isabelle Cristhyne Mendes Feliciano Graduanda em Direito pela FICR. Tem como foco de pesquisa e reflexão o protagonismo feminino no campo jurídico.

O exercício do direito é um desafio desde os seus primórdios. A profissão emerge com força, buscando trazer à sociedade equilíbrio e harmonia. Lidando diretamente com vidas, atendo-se a detalhes e minúcias do cotidiano que muitas vezes passam despercebidos. Na advocacia, não é diferente: cada profissional se dedica a defesa dos direitos do cidadão, buscando sempre a concretização da justiça. No entanto, nada disso passa sem obstáculos.

Advogar é um desafio para qualquer pessoa da área. Mas, para a mulher negra, esse desafio se intensifica bruscamente. O fruto dessa dificuldade nasce da herança colonial que o nosso país ainda carrega: uma herança que moldou estruturas sociais, políticas e jurídicas sob a lógica da exclusão. Sendo a última nação do Ocidente a abolir a escravidão, o Brasil foi construído sobre bases escravocratas que, embora oficialmente superadas, ainda ecoam nos espaços de poder e representação. Dessa forma, consolidou-se historicamente uma lógica de hierarquização racial que coloca as pessoas negras em desvantagem social, e as mulheres negras, na base dessa pirâmide. Essa realidade faz com que o acesso ao conhecimento jurídico e, principalmente, a permanência no mercado de trabalho ainda sejam desafios distantes de um cenário de verdadeira igualdade.

A Constituição Federal se tornou um marco para o estabelecimento da igualdade e da democracia. Com o advento dela, os direitos das pessoas puderam ser assegurados, partindo da premissa de equidade perante a lei, sem distinção ou preconceito, o que é explicito no Art. 5º da CF/88: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. O texto constitucional consagra a igualdade como fundamento da República. É válido lembrar que a Carta Magna traz a analogia em sua totalidade, incluindo a luta contra o racismo.

Nesse sentido, faz-se uma necessária reflexão sobre o lema inscrito na bandeira nacional “ordem e progresso”, que busca refletir a justiça democrática no país, porém parece ecoar de forma desigual: a ordem mantém estruturas excludentes e o progresso raramente inclui mulheres negras. O princípio da igualdade de gênero e da liberdade profissional ainda é promessa. Quando uma mulher negra entra em um tribunal, raramente se vê refletida nas paredes de mármore ou nas togas que julgam. A ausência não é apenas estatística, é simbólica. Em um país onde mais da metade da população é negra, ainda é exceção encontrar uma juíza, promotora ou defensora que traga no rosto as características da herança afro-brasileira. Essa lacuna revela que o sistema de justiça não é apenas desigual na aplicação da lei, mas também na composição de quem a interpreta.

Desde o período colonial, o Direito foi moldado para proteger a estrutura de poder (branca, masculina e proprietária), e não para garantir a igualdade prometida. A escravidão, não foi apenas uma prática econômica: foi uma instituição jurídica. Existiam contratos, escrituras, registros notariais que tratavam pessoas negras como bens. A lei dava forma e legitimidade à desumanização. Com a Lei Áurea de 1888, o país aboliu formalmente a escravidão, mas não o racismo jurídico. O Estado não criou nenhuma política de integração, indenização ou redistribuição de terras. As pessoas negras foram lançadas à informalidade, à pobreza e à marginalização.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019 a população negra representava 54,9% da força de trabalho no Brasil. Contudo, observa-se uma desproporção: pessoas negras (pretas e pardas) correspondiam a 64,2% dos desempregados. É notório que as pessoas negras são as que mais sofrem com a informalidade — 47,3% em 2018, contra 34,6% entre as pessoas brancas —, evidenciando a desigualdade racial enraizada no país. Apesar dos avanços sociais e jurídicos, ainda se naturaliza tratar o negro como cidadão de segunda categoria. Pouco se faz para a inclusão dessa parcela populacional, e a ausência de representatividade perpetua a desigualdade do passado.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), tem uma finalidade importante: lutar contra a desigualdade racial, desempenhando um papel de voz e oportunidade para quem mais precisa. Todavia, no cenário jurídico, a realidade vivida pelas advogadas negras mostra a ausência de representatividade. Segundo a OAB, 33% dos profissionais do Direito são negros e pardos, mas as mulheres negras representam apenas 6,02% das advogadas do país. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), embora as pessoas pretas e pardas representem cerca de 55,7% da população, elas ocupam menos de 15% dos cargos da magistratura e dos postos de servidores públicos. Enquanto isso, pessoas brancas compõem mais de 80% da magistratura e 70% do funcionalismo. É importante notar que, embora a maior parte da população feminina seja formada por mulheres negras e pardas, cerca de 55,7% de todas as mulheres no país, segundo o IBGE (2022), o Supremo Tribunal Federal, em seus 134 anos de história, teve apenas três ministras entre 172 magistrados. É inadmissível que, em mais de um século de existência, o Supremo nunca tenha admitido uma mulher negra em sua composição.

Nesse viés, vale ressaltar que, a trajetória da presença negra no Direito brasileiro é marcada pela resistência e pela insistência em existir num espaço historicamente negado. Um exemplo emblemático é o de Esperança Garcia, tida como a primeira mulher a advogar na história do Brasil. Mulher, negra e escravizada, em 1770 escreveu uma carta ao governador da Capitania do Piauí relatando abusos e reivindicando direitos, um ato de coragem e técnica jurídica notável para seu tempo. A Ordem dos Advogados do Brasil no Piauí reconheceu o documento como uma verdadeira petição e, em 2017, concedeu a ela o título simbólico de primeira advogada do Brasil.

Décadas depois, outro nome rompeu as barreiras do esquecimento: Francisco Gê Acayaba de Montezuma, advogado negro formado em Coimbra, fundador e primeiro presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros, além de um dos articuladores da criação da própria OAB. Político e jurista, Montezuma foi uma das primeiras vozes de alto escalão no Império a defender publicamente o fim da escravidão. Sua atuação demonstra que a inteligência e o protagonismo negro sempre estiveram presentes na formação do Direito nacional, embora raramente reconhecidos.

No presente, o legado de Esperança e Montezuma encontra continuidade em movimentos como o Black Sisters in Law (BSL), coletivo formado por mulheres negras juristas, advogadas e acadêmicas que atuam pela equidade racial e de gênero no sistema jurídico. O grupo simboliza a transição entre a resistência solitária do passado e a mobilização coletiva do presente, uma ponte entre o gesto corajoso de uma mulher escravizada, a liderança visionária de um jurista negro do século XIX e o protagonismo contemporâneo de advogadas que lutam para que a Justiça, enfim, se pareça com o povo que ela deve servir.

A balança da justiça se orgulha de ser equilibrada, mas o peso que ela mede não é o mesmo para todos. Para a mulher negra, o prato sempre é mais pesado: seja na ascensão profissional, seja no julgamento de sua competência. O Direito gosta de se imaginar cego, mas a balança que ele segura enxerga cor, gênero e classe. Talvez o verdadeiro ato de justiça seja tirar a venda e admitir que a balança sempre pendeu para o mesmo lado.

Hoje, ainda que o discurso jurídico se revista de igualdade e pluralidade, a estrutura do sistema permanece hierárquica. É como se o Estado, ciente da necessidade de parecer justo, aplicasse sua própria política de pão e circo: distribui migalhas de inclusão (acessos mínimos, vagas simbólicas, cotas restritas) e promove o espetáculo da diversidade (eventos de representatividade, discursos de inclusão), mas evita tocar nas feridas mais profundas da exclusão racial. As mulheres negras são convidadas a ocupar o palco, mas não a mudar o roteiro.

Some-se a isso o fato de que inúmeras mulheres possuem notável saber jurídico, experiência e técnica para adentrar o sistema jurídico. No entanto, a trajetória da mulher negra na advocacia, na magistratura ou na academia jurídica é marcada por uma dupla negação: de gênero e de raça. O preconceito não se expressa em ofensas diretas, mas em olhares que duvidam da competência, interrupções em audiências, desconfiança institucional. Enquanto o discurso da igualdade se sustenta no papel timbrado, a estrutura do sistema jurídico permanece ancorada em privilégios históricos. O prato mais pesado carrega séculos de invisibilidade e resistência. Ainda hoje, a herança desse passado dificulta o acesso à equidade racial e à igualdade de gênero, e na advocacia, não é diferente.

Portanto, para que essa cultura seja superada, é preciso trazê-la à tona e não tratá-la como tabu. A efetivação de uma cidadania plena no Brasil exige mais do que reformas legais: requer uma reeducação coletiva. É urgente repensar o modo como o país forma suas consciências, pois ainda somos uma sociedade educada para naturalizar privilégios e invisibilidades. Urge que a mulher negra deixe de ser tratada como cidadã de segunda classe.

A cidadania antirracista nasce, portanto, na infância: com o letramento racial, o ensino de uma história factual, sem o mito da cordialidade, e políticas educacionais que enfrentem o racismo como estrutura, não como exceção. No campo jurídico, esse processo deve se traduzir em ações concretas de reparação histórica, como a ampliação de cotas e programas de inclusão para advogadas negras na própria Ordem dos Advogados do Brasil. O Direito, que por séculos serviu para legitimar hierarquias raciais, precisa agora servir para desmontá-las. A cidadania deve ser o fio condutor dessa reconstrução e não apenas um ideal, mas uma prática cotidiana de justiça, memória e equidade. Só assim, o Brasil poderá, enfim, dar sentido ao lema “Ordem e Progresso” e a verdadeira democracia.

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