1. O Princípio da Neutralidade
A Emenda Constitucional n.º 132/2025 incluiu o princípio da neutralidade tributária como um fundamento do novo sistema, especialmente do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), conforme disposto no art. 156-A, §1º da Constituição Federal. A neutralidade é defendida como uma maneira de tornar o sistema mais justo e eficiente, evitando distorções provocadas por incentivos fiscais.
Contudo, a neutralidade defendida é, na prática, um argumento retórico para justificar um novo modelo centralizador, que ignora desigualdades históricas. Parte-se da premissa de que o Estado não deve interferir nas decisões dos agentes econômicos, devendo deixar que a economia funcione “naturalmente”. Essa lógica ignora que o desenvolvimento econômico mundial sempre foi impulsionado por políticas públicas ativas. Como explicar, por exemplo, a reconstrução e o sucesso tecnológico do Japão pós-guerra, ou o avanço dos Tigres Asiáticos, se não pela intervenção estatal estratégica? Nem mesmo Marx previu que a China rural se tornaria uma potência global antes de países industrializados da Europa.
2. A Falácia da Neutralidade
A neutralidade tributária, como formulada, é um conceito vazio. Ignora que políticas fiscais são instrumentos legítimos de desenvolvimento regional, especialmente em países com profundas disparidades socioeconômicas. A ideia de que todos os entes federativos competem em igualdade é utópica. Reduzir tudo à “vocação local” é um argumento simplista. Se fosse assim, a Zona Franca de Manaus jamais teria existido.
É preciso reconhecer que o desenvolvimento do Recife como polo tecnológico não teria ocorrido sem ação pública. O incentivo do ISS reduzido para empresas do Porto Digital foi essencial para a criação de um ecossistema de inovação. Do mesmo modo, presenciei o fechamento da antiga COPERBO (atual Alanxeo), no Cabo de Santo Agostinho, como exemplo claro da vulnerabilidade dos projetos que dependem exclusivamente de mercado, sem o amparo de políticas públicas.
3. A Degradação das Estratégias Locais
A imposição de um sistema tributário “neutro” tem minado a autonomia de estados e municípios, retirando dos entes subnacionais sua principal ferramenta de atração de investimentos: os incentivos fiscais. O novo modelo estabelece a cobrança do IBS no destino, desestimulando municípios que, ao longo de décadas, investiram para sediar empresas e indústrias. Com isso, correm o risco de sofrer esvaziamentos econômicos e desemprego.
O discurso da neutralidade também mascara a crescente dependência das regiões menos desenvolvidas em relação ao governo central. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR) aparece como única alternativa para projetos estruturantes. No entanto, esse fundo será controlado de forma centralizada, e o acesso a ele dependerá do alinhamento político dos entes federativos com o governo federal, o que compromete a autonomia local.
4. A Fragilização do Pacto Federativo
A criação do Comitê Gestor do IBS, conforme previsto na Lei Complementar n.º 214/2025, e a nova lógica de distribuição dos recursos também suscitam críticas quanto à violação do pacto federativo. A destinação de 80% da parcela estadual do IBS para os municípios mais populosos e a concentração desses mesmos municípios na composição do Comitê reforçam a centralização de poder e recursos. Isso pode provocar uma migração forçada para os grandes centros, enfraquecendo os pequenos municípios.
Além disso, observa-se uma convergência com a proposta da PEC n.º 188/2019, que visa extinguir municípios com menos de 5 mil habitantes. A Reforma Tributária, ao retirar sua capacidade de competir economicamente, pode induzir à sua inviabilização administrativa. Trata-se de um processo silencioso de extinção territorial.
Considerações Finais
A neutralidade tributária, como apresentada na Reforma, não passa de um conceito abstrato que ignora o papel histórico do Estado no planejamento e na indução do desenvolvimento. O fim da possibilidade de uso de políticas fiscais locais significa, na prática, um desmonte do pacto federativo. Os estados e municípios fora do eixo Sul-Sudeste terão de reinventar suas estratégias e disputar recursos federais com pouca autonomia decisória.
Em um país marcado por desigualdades regionais profundas, não é possível aplicar um modelo único de tributação com base em conceitos universalistas. É preciso reconhecer que a “neutralidade” é, muitas vezes, uma forma sofisticada de reproduzir desigualdades. O desafio é retomar o papel ativo do Estado no desenvolvimento territorial, com políticas que respeitem as diversidades regionais.
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