Yan Lucas Ramos Brasil

A “nova” panaceia da função social como elemento de validade negocial: Ensaio em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo

Postado em 03 de setembro de 2025 Por Yan Lucas Ramos Brasil Graduando em Direito pela Universidade de Pernambuco. Monitor acadêmico de direito das sucessões. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/PE e do grupo de pesquisa (CNPq) Fundamentos do Direito Civil Contemporâneo.

1.  Paulo Lôbo e o Direito Civil-Constitucional

Poucos civilistas lograram imprimir no direito privado brasileiro uma marca tão perene quanto Paulo Luiz Netto Lôbo. Com sua escrita refinada e visão sistemática, consolidou uma leitura do Código Civil à luz da Constituição da República, operando o que a doutrina consagrou como direito civil-constitucional. De sua orientação derivou uma verdadeira escola, da qual fazem parte civilistas do calibre de Maria Rita de Holanda, Marcos Ehrhardt Júnior, Catarina Oliveira e Fabíola Lôbo, entre tantos outros que, a seu modo, expandiram a tradição “lôbiana”.

Notoriamente conhecido pela defesa da força normativa dos princípios gerais do

direito, Paulo Lôbo sempre sustentou que seu caráter hermenêutico e irradiador contrasta com a insistência contemporânea do legislador em multiplicar positivações supostamente inovadoras. 

O autor da célebre coleção Direito Civil em seis volumes – da parte geral ao direito

das sucessões – acrescenta agora mais um marco à sua trajetória intelectual com o lançamento de Direito Civil em princípios. Nesta obra, promove verdadeira mudança de paradigma, ao afastar a distinção ontológica entre regras e princípios. Em suas palavras, “princípio jurídico é norma jurídica, com a mesma natureza estrutural das demais normas jurídicas (‘regras’). As suas estruturas e funções, a nosso juízo, são iguais”. A tradicional ideia de que a regra é concreta e o princípio, ambíguo, cede lugar, para Lôbo, à concepção de que a ambiguidade é inerente (também) às normas concretas. Tome-se como exemplo a diuturna discussão do Superior Tribunal de Justiça acerca da definição do índice de juros que incide sobre as dívidas civis: ora àquele presente no Código Tributário Nacional, ora a taxa Selic[1]

É precisamente aqui que emerge o caráter de panaceia atribuído à reforma. Paradoxalmente, tanto os defensores quanto os críticos do projeto alimentam esse discurso inflacionário. De um lado, apresenta-se a inclusão da função social e da boa-fé como solução universal para todos os vícios negociais; de outro, reagem-lhe críticas exacerbadas, como se a proposta representasse um perigoso alargamento da dogmática da nulidade[2]. O que se esquece – em ambos os polos – é que o sistema já contém a regra essencial: o art. 2035, parágrafo único, que desde 2002 invalida convenções contrárias à função social e à Constituição.

A insistência em repetir o já consagrado não é inócua: ao disfarçar de inovação aquilo que se encontra em vigor desde 2002, cria-se a aparência de que a principiologia somente teria eficácia quando institucionalizada enquanto regra. Esse formato de técnica normativa não apenas reduz a autonomia hermenêutica da Constituição da República no diálogo com o Código Civil, como também rebaixa a força normativa dos princípios ao plano da retórica legislativa, esvaziando a organicidade do sistema.

Assim, a verdadeira ilusão não está apenas no texto do projeto, mas também nas

reações que provoca. A retórica da panaceia opera nos dois sentidos: ora como promessa de inovação redentora, ora como ameaça de ruptura indesejável. Em qualquer caso, ignora-se que a tarefa já foi cumprida pelo legislador de 2002 e que a missão atual não é legislativa, mas hermenêutica – interpretar coerentemente a principiologia já incorporada ao sistema.

Diante desse quadro, o presente ensaio pretende problematizar a retórica da

novidade. Sustenta-se que a reforma pouco acrescenta à lógica já instituída e corre o risco de banalizar a principiologia ao transformá-la em cláusula reiterada de validade. Por fim, busca-se reconhecer que o direito civil não precisa de hipertrofia textual, mas de coerência hermenêutica, para que os princípios cumpram, em sua inteireza, o papel de dar unidade e racionalidade ao sistema privado.

2.  A proposta de reforma do Código Civil e o discurso da novidade

A Comissão de Juristas encarregada de apresentar proposta de atualização ao Código Civil brasileiro, sugeriu a inserção expressa da função social como elemento de validade dos negócios jurídicos. Em outras palavras, a novidade legislativa consistiria em acrescer ao rol do art. 166 – que já contempla hipóteses clássicas de nulidade  – a violação a princípios, elevando-os à categoria de requisitos formais da validade negocial, em consonância com o proposto art. 422-A, que trata da boa-fé como elemento de validade.

O discurso que acompanha a proposta parte da premissa de que o Código Civil, em

sua atual redação, teria relegado à função social um papel de diretriz interpretativa, incapaz de projetar efeitos sobre a própria existência e validade dos negócios. A reforma, por se tratar de mudança radical à primeira vista, não escapou de críticas de abalizada doutrina: 

O projeto de reforma do Código Civil parece ignorar as duas décadas de controvérsias que, à custa da segurança e da efetividade jurídicas, levaram a função social do contrato a um papel secundário, com nichos de aplicação mais definidos e uma utilidade reduzida, porém mais clara. A maior evidência disso é a previsão de que a violação da função social acarreta a invalidade do contrato e de suas cláusulas (art. 421, § 2º do Projeto). […] Ao introduzir essa mudança, o Projeto corre o risco de reativar o embate ideológico que, em grande parte, esvaziou a função social do contrato como ferramenta prática no Direito Contratual brasileiro. Além disso, insiste em trilhar um caminho inexplorado por outras nações de tradição romano-germânica, repetindo o equívoco do legislador de 2002, que gerou mais polêmica do que soluções concretas para as relações contratuais no Brasil.[3]

No entanto, ao propor repetir no plano da validade o que já está normativamente assegurado, não se ofereceu uma solução nova: o texto apenas desloca para o “palco principal” uma regra que, embora nos bastidores topográficos do Código, já cumpria seu papel. O resultado é paradoxal. Ao invés de fortalecer a principiologia, corre-se o risco de banalizá-la. É precisamente aqui que surge a metáfora da panaceia. A retórica legislativa apresenta a proposta como solução universal, apta a curar todas as patologias negociais; e as críticas que lhe são dirigidas, ao tratarem-na como ameaça inédita de alargamento da nulidade, reforçam o discurso da novidade. 

Em ambos os casos, esquece-se que o sistema já dispõe do instrumento necessário: o

art. 2035, parágrafo único. Assim, a verdadeira questão não é legislativa, mas hermenêutica. 

3.   O art. 2035, parágrafo único, e sua natureza dogmática

A função social, desde o advento do Código Civil de 2002, consolidou-se como

cláusula estrutural do sistema privado. A par de previsões pontuais – como no art. 421, que delimita a liberdade contratual, e no art. 1.228, § 1º, que condiciona o exercício do direito de propriedade ao atendimento de sua função –, a codificação brasileira alçou a função social ao patamar de verdadeiro limite imanente à autonomia privada. Não se trata de limitação externa, mas de requisito interno de validade e eficácia do exercício dos direitos.

É nesse horizonte que se deve ler o art. 2035. Embora o caput tenha função nitidamente intertemporal, disciplinando a subsistência dos negócios celebrados antes da entrada em vigor do Código, o parágrafo único extrapola a moldura transitória e se projeta como norma autônoma de ordem pública. Ao prescrever que “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”, o legislador fixou cláusula permanente de integração principiológica, que limita a autonomia negocial em consonância com a Constituição da República.

Embora alocado topograficamente nas disposições finais e transitórias, o parágrafo

único não é transitório. Sua natureza é estrutural: funciona como verdadeira ponte entre a principiologia constitucional e o regime das nulidades previsto no art. 166. Se este último apresenta hipóteses tipificadas de invalidade, o art. 2035, parágrafo único, fornece a base principiológica para o reconhecimento de nulidades em casos de afronta à função social. A topografia, portanto, não deve induzir a erro hermenêutico: o dispositivo é norma permanente, cogente e autônoma.

Diante disso, percebe-se a inconsistência do discurso reformista. Ao pretender incluir

expressamente a função social como requisito de validade dos negócios jurídicos, o projeto não inaugura um novo regime; apenas repete, em outro espaço, regra que já está consolidada desde 2002. O problema não é apenas de redundância, mas de método: ao insistir na reiteração legislativa, cria-se a aparência de que a principiologia somente adquire força quando positivada de modo explícito e reiterado, esvaziando a organicidade do sistema.

O risco, em última análise, é o da banalização. Transformar a função social em mera fórmula de validade, reiterada exaustivamente, compromete a densidade de sua aplicação concreta, convertendo-a em recurso retórico disponível para todo tipo de litígio. A “panaceia” de odes ao projeto (bem como de suas críticas) oculta o que é essencial: o sistema já dispõe de instrumentos suficientes para conter abusos da autonomia privada. A verdadeira tarefa não é legislativa, mas hermenêutica, exigindo que se compreenda a força normativa do art. 2035, parágrafo único, em diálogo sistemático com o art. 166 e com a Constituição da República. O que se demanda não é a multiplicação de cláusulas, mas a interpretação sistemática que preserve a coerência do direito civil-constitucional. 

4.  Conclusão 

A análise empreendida ao longo deste ensaio permite afirmar, com segurança, que a

proposta de reforma do Código Civil não introduz inovação substancial. A inclusão da função social no plano da validade não inaugura um novo regime dogmático; limita-se a um deslocamento topográfico da regra já consolidada no art. 2035, parágrafo único, do Código vigente. Tal deslocamento, embora formalmente perceptível, não altera a eficácia, a hierarquia normativa ou a interpretação judicial dos princípios envolvidos, limitando-se a criar a impressão de um avanço legislativo quando, na realidade, apenas se reiteram comandos já operantes.

A lição de Paulo Lôbo revela-se ainda mais atual nesse contexto. Ao sustentar que os princípios não dependem de onipresença textual para produzir efeitos, mas que sua força decorre da coerência sistêmica e da orientação constitucional, evidencia-se que a dogmática civil não deve submeter-se à hipertrofia normativa. A principiologia não se robustece pela repetição exaustiva de dispositivos, mas pela interpretação hermenêutica capaz de irradiar coerência em diálogo permanente com o sistema normativo existente. A função social, mesmo reiterada, já se encontrava operativa, conferindo orientação prática às relações jurídicas sem necessidade de reforço legislativo.

A verdadeira homenagem a Paulo Lôbo, portanto, não consiste em enaltecer o

legislador por uma inovação inexistente, mas em preservar a advertência central do autor: o direito civil se renova não pela multiplicação de comandos legais, mas pela interpretação constitucionalmente orientada, capaz de conferir unidade, racionalidade e segurança ao sistema. Reconhecer essa distinção é preservar a força dos princípios e a coerência do direito civil, reafirmando que a inovação dogmática se constrói no plano interpretativo, e não na repetição legislativa.

Referências

LÔBO, Paulo. Direito Civil em princípios. Belo Horizonte: Fórum, 2025.

[1] Confira-se o novo capítulo do imbróglio em:

https://www.conjur.com.br/2025-ago-05/stj-vai-fixar-tese-sobre-selic-para-corrigir-dividas-civis-antes-da-lei-14905-2014/.

[2] Tivemos a oportunidade de fazer tal ponderação outrora, para tanto, permita-nos remeter a FLUMIGNAN, Silvano José Gomes; BRASIL, Yan Lucas Ramos. Boa-fé e nulidade no projeto de reforma do Código Civil. Consultor Jurídico. Disponível em: , acesso em 31 ago. 2025.

[3] ARAÚJO, Paulo Doron R. de et al. Obrigações e Contratos. In: MARTINS COSTA, Judith; MELO, Diogo

Leonardo Machado de; ARAUJO, Paulo Doron R. de (coord.). Análise Preliminar do Anteprojeto de Reforma do Código Civil. Revista do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo. Vol. 38.1, Ano 27, São Paulo, jul. 2024, pp. 37-44.

A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.

Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.

Gostou? Compartilhe esse Conteúdo.

Fale Conosco pelo WhatsApp
Ir para o Topo do Site