Para quem não milita no setor, pode soar estranho que em 2025 ainda se discuta se a ocorrência da pandemia de COVID/19 pode ser considerada uma externalidade passível de dar ensejo a revisão das condições inicialmente pactuadas no âmbito de contratos administrativos.
Todavia, para os operadores do direito administrativo, sabe-se à saciedade que há diversos claims ainda em tramitação na Administração discutindo a necessidade de reequilibrar a equação econômico-financeira de contratos administrativos afetados pela crise do Coronavírus.
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou situação de pandemia em razão do novo Coronavírus (2019-nCoV, COVID-19 ou ainda SARS-coV-2). Antes disso, no Brasil, em 03 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde (MS) declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo COVID-19 por meio da Portaria nº 188/2020.
A partir da declaração da ESPIN surgiu um verdadeiro “regime jurídico excepcional de emergência sanitária”, que, desde então, vem sendo complementado, definido, mas não necessariamente aperfeiçoado por inúmeras normas legais e infralegais, sejam de alcance nacional (editadas pelo Congresso Nacional ou pelo Poder Executivo Federal), seja de alcance local (editadas pelas Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores ou por Governadores e Prefeitos).
Em Pernambuco, por exemplo, a situação anormal, caracterizada como “Estado de Emergência em Saúde Pública” em virtude da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus foi declarada no Decreto Estadual nº 48.833, de 20 de março de 2020 e pelo Decreto Estadual nº 52.505, de 29 de março de 2022 ao passo que as medidas de enfrentamento e convivência com a Situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional foram previstas no Decreto Estadual nº 48.809, de 14 de março de 2020 e no Decreto Estadual nº 48.832, de 19 de março de 2020.
Entre as medidas previstas no Decreto Estadual nº 48.809, de 14 de março de 2020, destacamos a que constava do art. 3º daquela norma infralegal: “Art. 3º Ficam suspensos, no âmbito do Estado de Pernambuco, eventos de qualquer natureza com público superior a 500 (quinhentas) pessoas.”
Em tal cenário, questiona-se: a pandemia da COVID-19 pode ser considerada evento extraordinário?
Para responder tal questionamento, comecemos por citar o Parecer nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU[i] da Consultoria Jurídica da AGU junto ao Ministério da Infraestrutura (MINFRA), que proferiu enquadramento da pandemia de COVID-19 na álea extraordinária, o que possibilitaria o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos com base na teoria da imprevisão:
“IV. A pandemia do novo coronavírus configura força maior ou caso fortuito, caracterizando álea extraordinária para fins de aplicação da teoria da imprevisão a justificar o reequilíbrio de contratos de concessão de infraestrutura de transportes, desde que atendidos os demais requisitos indicados neste Parecer.”
No âmbito dos Estados, a PGE/PR firmou o seguinte entendimento no Parecer Referencial nº 002/2020[ii]:
“a) A ocorrência da pandemia não era previsível, tal como também era inviável antever a dimensão dos reflexos econômicos que seriam produzidos.
b) As contratações em curso de execução contemplaram as condições de mercado então vigentes e as circunstâncias normais e ordinárias inerentes à atividade.
c) Nenhum particular formulou proposta contemplando remuneração para os custos econômicos desencadeados pela crise.
d) Assim, a paralisação da atividade de fornecedores (no exterior e no próprio Brasil) e a desvalorização relevante da moeda nacional são eventos extraordinários, cuja consumação é um efeito indireto da pandemia.
e) Não apenas a ocorrência da pandemia era um evento insuscetível de previdência Também o eram todas as implicações econômicas dela decorrentes, que estão a produzir tanto uma crise de oferta como de demanda.”
Já junto aos órgãos de controle que formam o Sistema Tribunal de Contas, registre-se que o Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo (TCE/ES) reconheceu, por meio do Parecer em Consulta TC nº 012/2021[iii] que a pandemia da COVID-19, pode ser considerada uma possível justa causa para a aplicação do princípio da imprevisibilidade, e, subsidiariamente, quando adequado, da teoria da onerosidade excessiva:
“1. A Teoria da Onerosidade Excessiva, instituída pelos artigos 478 a 480 da Lei Federal nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, é aplicada como fonte subsidiária à teoria da imprevisão adotada pelo artigo no art. 65, II, ‘d’, da Lei Federal nº 8.666/1993. Isso porque, independentemente de a escolha pela teoria da imprevisão demonstrar ser a teoria mais adequada, como tais teorias têm a mesma base principiológica, é possível que, respeitados os limites legais e materiais aplicáveis ao caso, se utilize subsidiariamente a teoria da onerosidade excessiva aos casos em que seja aplicável a teoria da imprevisibilidade.
2. A Pandemia da COVID-19, pode ser considerada uma possível justa causa para a aplicação do princípio da imprevisibilidade, e, subsidiariamente, quando adequado, da teoria da onerosidade excessiva.”
Muito embora versando especificamente sobre um contrato de concessão de serviço de transporte público, o Tribunal de Contas do Paraná (TCE/PR) firmou entendimento, também aplicável aos contratos relativos às obras públicas, no sentido de admitir a possibilidade de reequilíbrio econômico-financeiro quando restem demonstrados, de modo inequívoco, os eventos supervenientes e extraordinários, de consequências imprevisíveis e inevitáveis, trazidos pela pandemia do COVID-19, que estejam gerando onerosidade excessiva e causando significativo desequilíbrio ao contrato[iv]:
“(iii) mediante o devido processo de reequilíbrio econômico-financeiro em que reste demonstrado, de modo inequívoco, os eventos supervenientes e extraordinários, de consequências imprevisíveis e inevitáveis, trazidos pela pandemia do Covid-19, que estejam gerando onerosidade excessiva e causando significativo desequilíbrio ao contrato de concessão, é possível a celebração de Aditivo Contratual que estabeleça medidas compensatórias ao concessionário para recompor o equilíbrio econômico-financeiro original do contrato e preservar a continuidade de execução do serviço público de transporte público;” (Acórdão nº 3738/20 – Tribunal Pleno, Processo nº: 595220/20 – Consulta, Conselheiro Ivens Zschoerper Linhares)
Em consonância aos entendimentos interna corporis dos órgãos consultivos da advocacia pública e dos Tribunais de Contas, o Poder Judiciário também tem entendido que a pandemia de COVID/19 é uma álea extraordinária que autoriza a revisão de preços para reequilibrar a equação econômico-financeira dos contratos administrativos:
“A pandemia de COVID-19 constitui fato previsível de consequências incalculáveis no setor da construção civil, autorizando o reequilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos quando demonstrada elevação extraordinária dos custos dos insumos que extrapole a álea ordinária empresarial” (TJ-AL – Apelação Cível: 07443921320248020001 Maceió, Relator.: Des. Fernando Tourinho de Omena Souza, Data de Julgamento: 17/06/2025, 3ª Câmara Cível, Data de Publicação: 25/06/2025)
“O aumento excessivo de preços em decorrência da pandemia da Covid-19 configura fato superveniente e imprevisível que autoriza a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos, nos termos do art. 65, II, d, da Lei nº 8.666/1993. A existência de aditivos e cláusulas de reajuste contratual não impede o reconhecimento do reequilíbrio econômico-financeiro quando comprovada elevação extraordinária de custos não prevista nas hipóteses ordinárias de reajuste. A Administração Pública deve restabelecer a equação econômico-financeira do contrato sempre que comprovada onerosidade excessiva provocada por fatos imprevisíveis, sob pena de violação aos princípios da legalidade, da boa-fé e da vedação ao enriquecimento sem causa” (TJ-MG – Apelação Cível: 50021819820238130112, Relator.: Des.(a) Fábio Torres de Sousa, Data de Julgamento: 21/08/2025, Câmaras Cíveis / 5ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 22/08/2025)
“Forçoso reconhecer a aplicabilidade da teoria da imprevisão ao caso em voga, em razão da configuração de álea econômica extraordinária pela contemporaneidade do surgimento da pandemia da COVID-19, o que exige a revisão do contrato, na forma do artigo 65, inciso II, alínea ‘d’ da Lei nº 8.666/93” (TJ-PR 00047034020218160026 Campo Largo, Relator.: substituto marcio jose tokars, Data de Julgamento: 23/07/2023, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: 26/07/2023)
Neste particular, em sede de conclusão, nos parece necessário que mais Procuradorias dos entes infralegais e mais Tribunais de Contas se manifestem acerca desta óbvia caracterização de que a pandemia de COVID-19 foi sim um elemento que desequilibrou, ao menos em tese, a equação econômico-financeira dos contratos, pois, a partir de tal premissa, a Administração Pública apenas apreciaria se, na prática, os claims dos interessados comprovam a vulneração do princípio da intangibilidade da proposta como consequência da crise do Coronavírus, permitindo-se que, por consequência, se diminuísse a possibilidade de que demandas sobre tal tema terminem sendo debatidas no sempre sobrecarregado Poder Judiciário.
[i] Disponível em https://www.gov.br/transportes/pt-br/assuntos/conjur/Geral00261406894540CS.pdf acesso em 15/12/2025.
[ii] Disponível em https://www.pge.pr.gov.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2020-04/parecerreferencial002de2020pge.pdf acesso em 15/12/2025.
[iii] Disponível em https://www.tcees.tc.br/wp-content/uploads/formidable/44/Informativo-de-Jurisprudencia-n.-112.pdf acesso em 15/12/2025.
[iv] Disponível em https://dspace.almg.gov.br/handle/11037/64244 acesso em 15/12/2025.
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