Vivemos tempos em que os contornos da democracia são postos à prova diariamente. O ambiente político, já naturalmente marcado por dissensos e paixões, tem se radicalizado ao ponto de fazer ruir a própria tolerância que sustenta o convívio institucional. Cada decisão judicial se torna motivo de revolta ou celebração absoluta, conforme a adesão política do observador; cada iniciativa legislativa é tratada como traição ou redenção, dependendo do lado que a proclama; e o Poder Executivo, por vezes, age como se personificasse a vontade popular em estado puro e permanente. É nesse cenário que a reflexão sobre a separação dos poderes se impõe — e não, não é sobre o IOF.
O Estado Democrático de Direito não é apenas um modelo de governo, mas um pacto civilizatório. Como bem recorda o constitucionalista português JORGE MIRANDA, trata-se de uma forma de organização estatal que assenta sobre dois pilares fundamentais: a soberania popular e a limitação do poder pelo direito. Ou seja, não basta que o poder emane do povo — é necessário que esse poder seja exercido com respeito às regras jurídicas que o condicionam, contêm e finalizam.
Contudo, o que se tem observado nos últimos anos é o desvirtuamento desses princípios. A retórica da maioria eleitoral tem sido usada como salvo-conduto para afrontar o equilíbrio entre os poderes e deslegitimar qualquer atuação institucional que se contraponha a certos interesses políticos momentâneos. Não raro, escutamos líderes políticos — inclusive de alta investidura — acusando o Judiciário de “intervencionismo”, ou o Parlamento de “obstrução”, apenas por cumprirem seu papel constitucional. A crítica legítima às instituições é parte da democracia; a deslegitimação sistemática e calculada não o é.
CANOTILHO, Catedrático da Universidade de Coimbra, por sua vez, explica que a Constituição não é apenas um instrumento de limitação do poder, mas também de organização e direcionamento da vida política, social e econômica. A Constituição, portanto, estabelece o horizonte normativo e ético da democracia.
A separação dos poderes — Executivo, Legislativo e Judiciário — surge como mecanismo essencial de contenção recíproca e de preservação da liberdade. Cada poder deve atuar dentro dos seus limites constitucionais, sem subserviência, mas também sem arrogância institucional. Não há hierarquia entre os poderes, mas sim interdependência e, fundamentalmente, cooperação.
O Poder Executivo tem por função principal a administração da máquina estatal e a execução das políticas públicas. Ao chefe do Executivo compete implementar os programas de governo aprovados nas urnas, nomear ministros, coordenar os órgãos administrativos e propor políticas que atendam ao bem comum. Mas esse poder não é soberano — ele é responsável. Deve prestar contas de seus atos e respeitar os limites legais e constitucionais de sua atuação, dialogando permanentemente com o Legislativo.
O Poder Legislativo, por sua vez, representa o pluralismo da sociedade. Sua função precípua é a elaboração das leis, mas não se resume a isso. O Parlamento também exerce o controle dos atos do Executivo, aprova orçamentos, fiscaliza políticas públicas e realiza debates que permitem a construção do consenso democrático, mas não deveria impor diretamente execução de políticas públicas através de execução orçamentária, sem diálogo com o Executivo, como acontece com as tais emendas parlamentares (tidas por secretas).
O Poder Judiciário, por fim, é o intérprete último da Constituição e das leis. Sua legitimidade não deriva do voto direto, mas da imparcialidade, da técnica e da garantia dos direitos fundamentais. É justamente por não estar submetido às flutuações do humor eleitoral que o Judiciário pode servir como guardião das liberdades públicas e como árbitro nas disputas entre os demais poderes.
Nesse contexto, os órgãos de soberania são definidos como os principais titulares do exercício do poder político soberano, aos quais incumbe assegurar a condução do Estado segundo os princípios constitucionais. São estruturas fundamentais do Estado que exercem funções constitutivamente separadas — legislativa, executiva e jurisdicional — assegurando, assim, o equilíbrio e a interdependência dos poderes. Como observa CANOTILHO, os órgãos de soberania são expressão institucional da soberania popular e do princípio do Estado de Direito.
JORGE MIRANDA enfatiza que os órgãos de soberania não se confundem com simples órgãos administrativos ou técnicos, pois têm competências diretamente previstas na Constituição e funcionam como centros de poder constitucionalmente legitimado. Eles são, por isso, elementos estruturantes da ordem constitucional e destinatários diretos da legitimidade democrática. Logo, a soberania se concretiza no exercício articulado e controlado desses órgãos, sendo essencial a sua autonomia e a sua inter-relação responsável, cada um com competências próprias e limites bem definidos, dentro de um sistema de freios e contrapesos.
No direito constitucional brasileiro, os órgãos de soberania são as estruturas institucionais às quais a Constituição confere o exercício das funções fundamentais do Estado. Embora a Constituição de 1988 não utilize expressamente a expressão “órgãos de soberania”, devemos reconhecer que esses órgãos se identificam com os Poderes da República: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A partir desses Poderes, estruturam-se os principais centros de deliberação e decisão do Estado, que exercem competências essenciais à realização da soberania popular e à garantia do Estado Democrático de Direito.
Os órgãos de soberania, ainda que não definidos sob esse rótulo específico, correspondem às instâncias máximas dos poderes constituídos e são os destinatários do princípio da separação dos poderes e os responsáveis por garantir a harmonia e a independência recíproca, conforme previsto no artigo 2.º da Constituição Brasileira.
No contexto brasileiro, os órgãos de soberania podem ser compreendidos a partir da seguinte associação: o Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, representa esse órgão de soberania no Poder Legislativo; na Presidência da República funciona, por excelência, essa função no âmbito do Poder Executivo; e o Supremo Tribunal Federal o faz no Poder Judiciário. Cada um desses órgãos atua de forma autônoma, embora interdependente, compondo a estrutura do Estado brasileiro.
No plano internacional, embora a titularidade da soberania permaneça com o povo, o seu exercício, no âmbito das relações exteriores, se dá por meio do Poder Executivo, pelo que a representação do Estado brasileiro se concentra nas mãos do Presidente da República, que exerce competências constitucionais explícitas como celebrar tratados, manter relações diplomáticas e conduzir a política externa do país. Assim, o Executivo, no exercício dessas funções, atua como o rosto do Estado soberano diante da comunidade internacional.
De registrar que a jurisdição constitucional, exercida precipuamente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é uma das expressões mais elevadas do exercício da soberania estatal no Estado Democrático de Direito. O STF, como órgão de cúpula do Judiciário e guardião da Constituição, desempenha função essencial no controle de constitucionalidade, na interpretação dos direitos fundamentais e na estabilização do sistema jurídico.
Por isso que, no plano interno é o Poder Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal, que atua como moderador institucional dos conflitos entre os demais poderes. A função contramajoritária do STF se revela especialmente importante nos momentos de crise política ou de tensão entre o Executivo e o Legislativo, cabendo ao Judiciário garantir a supremacia da Constituição e a estabilidade das instituições Trata-se de uma função moderadora que assegura a convivência harmônica entre os poderes, sem subordinação de um ao outro.
A definição e estruturação dos órgãos de soberania são elementos centrais para a compreensão da arquitetura constitucional contemporânea. Eles representam, ao mesmo tempo, a racionalização do poder e a garantia do seu exercício legítimo. Essa concepção reforça o compromisso do Estado com a democracia, a legalidade e os direitos fundamentais, princípios que encontram nos órgãos de soberania os seus principais guardiões institucionais.
A compreensão e o funcionamento desses órgãos são fundamentais para garantir a legitimidade das instituições, a efetividade dos direitos fundamentais e a preservação do regime democrático. O equilíbrio entre os poderes, a limitação recíproca e o respeito às funções constitucionais asseguram que a soberania não seja concentrada, mas exercida de modo plural, responsável e democrático.
3. A judicialização da política e seus efeitos na separação dos poderes.
A judicialização da política — fenômeno intensificado nas últimas décadas — é reflexo da crescente complexidade das relações sociais e do acirramento das tensões institucionais. Nesse quadro, é inevitável que o Judiciário seja chamado a decidir controvérsias que envolvem o Executivo e o Legislativo. Longe de ser um desvio, essa atuação é expressão do seu papel constitucional de garantir a supremacia da Constituição.
Mas é preciso compreender os limites dessa atuação. O Judiciário não é substituto da política. Como enfatiza CANOTILHO, a justiça constitucional deve ser exercida com autocontenção, prudência e respeito ao espaço deliberativo dos outros poderes. No entanto, quando a ordem constitucional é ameaçada — seja por autoritarismo, por omissão deliberada ou por manipulação legislativa —, é dever do Judiciário agir, e, principalmente, defender a República, o Estado Democrático de Direito, e os valores essenciais dispostos nas cláusulas pétreas constitucionais.
A Constituição brasileira, em seu artigo 60, §4º, estabelece as chamadas “cláusulas pétreas” — dispositivos que não podem ser abolidos nem mesmo por emenda constitucional. São elas: a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais. Esses elementos constituem o núcleo essencial do pacto democrático e não estão sujeitos ao arbítrio das maiorias ocasionais.
A separação dos poderes não é uma barreira entre compartimentos estanques, mas uma rede de freios e contrapesos. O Judiciário não “intervém” na política quando declara a inconstitucionalidade de uma norma ou anula um ato do Executivo; ele cumpre sua missão de aplicar a Constituição. Deslegitimar essa função com narrativas políticas, como tem ocorrido com frequência lamentável, é atentar contra a própria espinha dorsal do Estado Democrático de Direito.
A política exige consenso, não imposição. Democracia não é sinônimo de vontade de maioria exercida a qualquer custo. A política, na democracia, deve ser o espaço do dissenso civilizado, da busca de consensos possíveis e da construção de soluções compartilhadas. O consenso é a alma da democracia participativa, pois é nele que se forja a legitimidade das decisões que nos vinculam a todos, inclusive às minorias, respeitados os seus direitos fundamentais inalienáveis, que funcionam como trunfos contra a maioria, nos dizeres do jurista português JORGE REIS NOVAIS.
Como observa PAULO OTERO, o processo democrático não sacraliza vitórias eleitorais. A eleição de um governante ou de uma maioria parlamentar é um mandato temporário, limitado, condicionado pela legalidade constitucional. As maiorias que saem das urnas são sempre relativas, e não absolutas. Representam um momento do jogo democrático, mas não o fim da partida. Por isso, as instituições não podem se curvar ao voluntarismo político ou às pressões populistas.
Assim, o poder popular, embora central, não é absoluto; ele deve ser limitado pelo respeito aos direitos fundamentais e ao ordenamento jurídico, evitando os riscos de uma Democracia Totalitária oriunda de uma sacralização de resultados eleitorais, como alude o jurista lusitano PAULO OTERO.
Falar da separação dos poderes hoje não é apenas uma lição de teoria constitucional — é uma urgência cívica. Nos últimos tempos, não estamos diante de simples divergências políticas, mas de tentativas sistemáticas de deslegitimar os pilares que sustentam o sentido do Estado Democrático de Direito. É essencial para conter os impulsos autoritários e preservar a convivência institucional.
Autoridades que deveriam preservar a institucionalidade, muitas vezes a desconstroem com insinuações ou acusações infundadas contra os demais poderes. O Judiciário é acusado de ativismo por cumprir seu papel constitucional; o Parlamento é tachado de obstrutivo quando exerce o controle sobre o Executivo. Essa retórica, mais do que crítica legítima, revela uma estratégia de deslegitimação sistemática e perigosa.
O ataque à separação dos poderes, portanto, não é apenas uma crise institucional: é uma violação do próprio texto constitucional. Quando se desqualifica a atuação do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, com discursos de “militância jurídica” ou “usurpação de poder”, ignora-se que o STF atua precisamente para defender as cláusulas pétreas contra sua corrosão. Quando se ameaça fechar o Congresso ou se propaga a ideia de retorno a períodos de exceção, atenta-se contra o pacto republicano.
A política não deve ser entendida como um campo de batalha, mas como espaço de diálogo e mediação. A Constituição não representa um entrave, e sim um guia para a realização dos ideais democráticos. Os Poderes da República não são rivais, mas colaboradores na tarefa comum de promover o bem coletivo. E o Judiciário, ao exercer sua missão de guardião da Constituição, não pode ser tratado como adversário da democracia — pois é, muitas vezes, sua última trincheira.
Podemos — e devemos — discordar sobre políticas públicas, estratégias e visões de futuro. Logo, podemos divergir sobre quase tudo, menos sobre as regras do jogo — pois quando a deslegitimação das instituições se torna regra, o colapso do Estado de Direito deixa de ser uma hipótese e passa a ser uma ameaça concreta. E isso definitivamente não é sobre o IOF.
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