O presente artigo tem como objetivo analisar o papel do Direito como instrumento de justiça social no Brasil, à luz da Constituição Federal de 1988, confrontando as garantias constitucionais previstas com a realidade cotidiana vivenciada pela sociedade. Partese da premissa de que o Direito, em sua função reguladora e transformadora, deve ser compreendido como mecanismo de redução das desigualdades sociais e de promoção da dignidade da pessoa humana. Contudo, observa-se, no cenário nacional, um descompasso evidente entre as promessas normativas e sua efetividade prática, o que desafia não apenas o Estado, mas também a sociedade civil e os operadores do Direito. Nesse contexto, discute-se o papel do Poder Judiciário, da atuação estatal e da cidadania participativa na construção de um Direito efetivamente comprometido com a justiça social. O texto apresenta uma análise crítica fundamentada em doutrina, legislação e jurisprudência, ressaltando a importância da efetividade das normas constitucionais e o papel dos estudantes e profissionais de Direito como agentes transformadores.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 consagrou-se como a chamada “Constituição Cidadã”, expressão consagrada por Ulysses Guimarães, ao inaugurar um novo paradigma de Estado democrático de direito voltado para a inclusão, a cidadania e a justiça social. Em seu artigo 1º, a dignidade da pessoa humana figura como fundamento da República, ao lado da cidadania e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, elementos que estruturam o Estado e se refletem em todo o ordenamento jurídico. Já em seu artigo 3º, a Constituição explicita os objetivos fundamentais da República, entre os quais se destacam a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais.
Entretanto, apesar de sua densidade normativa, a Constituição de 1988 enfrenta dificuldades em concretizar plenamente esses objetivos. O artigo 6º da Carta Magna, que enumera os direitos sociais, estabelece educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, bem como a assistência aos desamparados como garantias fundamentais. Contudo, a distância entre o texto normativo e a realidade social é visível no cotidiano da população brasileira. Enquanto a norma promete dignidade e igualdade, a prática revela um país marcado por favelização, precarização do trabalho, desigualdade de acesso à saúde e à educação e falta de políticas públicas efetivas para os mais vulneráveis.
O Direito, nesse contexto, deve ser compreendido não como um conjunto estático de normas, mas como instrumento dinâmico de transformação social. Doutrinadores como Norberto Bobbio destacam que a questão central dos direitos fundamentais não é mais a sua declaração, mas a sua efetividade. Para Bobbio, os direitos já foram amplamente reconhecidos em textos normativos, mas o desafio atual está em garantilos de forma concreta. Essa crítica é especialmente pertinente ao cenário brasileiro, no qual a Constituição de 1988 assegura uma gama ampla de direitos sociais, mas sua concretização ainda esbarra em obstáculos estruturais, como a má distribuição de recursos, a falta de políticas públicas contínuas e a ineficiência estatal.
Outro ponto relevante é a função social das normas jurídicas, em especial a função social da propriedade, prevista no artigo 5º, inciso XXIII, e no artigo 182 da Constituição. A moradia digna, incluída como direito social pela Emenda Constitucional nº 26/2000, é um exemplo claro da distância entre norma e realidade. Apesar de inúmeros programas habitacionais, como o “Minha Casa, Minha Vida” e sua reformulação em “Casa Verde e Amarela”, milhões de brasileiros ainda vivem em condições precárias, sem saneamento básico adequado ou em áreas de risco. O Direito, que deveria servir como instrumento de inclusão, acaba muitas vezes sendo acessado de forma desigual, beneficiando mais aqueles que já têm condições de buscar o Judiciário.
Nesse ponto, observa-se a importância da judicialização dos direitos sociais. A atuação do Poder Judiciário tem sido determinante para garantir, ainda que de forma pontual, direitos básicos como saúde e educação. A judicialização da saúde, por exemplo, tornou-se fenômeno relevante, obrigando o Estado a fornecer medicamentos e tratamentos não ofertados administrativamente. Contudo, essa via, embora necessária em muitos casos, também gera críticas: pode favorecer aqueles com mais recursos para acessar advogados e ingressar com ações, reforçando desigualdades. Além disso, coloca em evidência a tensão entre o princípio da reserva do possível e o mínimo existencial. Enquanto o Estado alega limitações orçamentárias para justificar a ausência de políticas públicas, o Judiciário tem reconhecido que há direitos que não podem ser relativizados, como a saúde e a vida.
Essa tensão entre norma e realidade também se evidencia no campo do trabalho. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Constituição asseguram proteção ao trabalhador, mas a precarização das relações laborais, intensificada pela informalidade e pela chamada “uberização”, desafia o Direito do Trabalho a se reinventar para dar respostas adequadas. O princípio da proteção, essencial ao Direito do Trabalho, parece muitas vezes enfraquecido diante das transformações tecnológicas e da pressão econômica por flexibilização. A justiça social, que deveria ser o norte, torna-se ofuscada por interesses mercadológicos.
Para além das falhas estruturais, há ainda o desafio da cultura jurídica. Muitos cidadãos sequer conhecem seus direitos ou não têm condições de reivindicá-los. O acesso à justiça, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, permanece, em muitos casos, apenas formal, já que barreiras econômicas, educacionais e geográficas afastam a população mais carente do Judiciário. Nesse cenário, ganha relevância a atuação da Defensoria Pública, prevista no artigo 134 da Constituição, que desempenha papel essencial para garantir a assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados.
Para além das falhas estruturais, há ainda o desafio da cultura jurídica. Muitos cidadãos sequer conhecem seus direitos ou não têm condições de reivindicálos. O acesso à justiça, previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição, permanece, em muitos casos, apenas formal, já que barreiras econômicas, educacionais e geográficas afastam a população mais carente do Judiciário. Nesse cenário, ganha relevância a atuação da Defensoria Pública, prevista no artigo 134 da Constituição, que desempenha papel essencial para garantir a assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados.
Concluir que o Direito é um instrumento de justiça social implica reconhecer tanto sua força normativa quanto suas limitações práticas. O Brasil possui um dos textos constitucionais mais avançados do mundo no tocante aos direitos fundamentais, mas a efetividade desses direitos depende da atuação integrada do Estado, da sociedade civil e dos operadores do Direito. É preciso superar a visão de que a Constituição é uma carta de intenções e afirmar que ela é um projeto político-jurídico vinculante, cuja concretização deve ser exigida e fiscalizada pela cidadania.
Portanto, a distância entre a norma constitucional e a realidade cotidiana não deve ser motivo para descrédito no Direito, mas sim um chamado à ação. Cabe ao estudante e ao futuro profissional de Direito assumir seu papel como agente de transformação, comprometendo-se não apenas com a aplicação técnica da norma, mas com a luta pela efetivação da justiça social. Afinal, o Direito só cumpre sua função quando deixa de ser promessa e se torna realidade vivida no cotidiano de cada cidadão.
Referências
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003.
FERRAZ, Tais. Direito fundamental à moradia: uma análise sobre a efetividade da atual política habitacional. Revista Doutrina TRF-4, 2010.
MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2022.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 46. ed. São Paulo: Malheiros, 2023.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica ao ativismo judicial. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
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