Ao alterar a Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (LOTCEPE), a Lei Estadual nº 18.527/2024 não trouxe qualquer limitação à possibilidade de se aplicar o princípio da retroatividade benigna às novas regras sobre a prescrição trienal intercorrente nos processos de controle.
Já a Resolução TC nº 245/2024, ato infralegal editado para regulamentar o regime prescricional instituído pela Lei Estadual nº 18.527/2024, dispôs em seu art. 2º, § 2º que a prescrição intercorrente só será admitida exclusivamente após 1º de maio de 2024, data da publicação da lei que alterou a LOTCEPE.
Para que não restem dúvidas acerca da natureza de ato administrativo infralegal e regulamentar da Resolução TC nº 245/2024, a LOTCEPE preconiza de forma bastante clara em seu art. 56 que “os atos administrativos do Tribunal de Contas consistirão em Resoluções e Portarias, sendo aquelas para regulamentar procedimentos de atribuições que alcancem seus jurisdicionados e estas para procedimentos administrativos”.
Constando a vedação à aplicação retroativa da prescrição intercorrente apenas e tão somente da Resolução TC nº 245/2024 e não da Lei Estadual nº 18.527/2024 e/ou da LOTCEPE, é lícito defender que o ato infralegal em questão regulamentou a inviabilidade de retroação da prescrição intercorrente em caráter praeter legem, incorrendo-se assim numa ilegalidade à luz de entendimentos doutrinários e pretorianos.
Neste particular, registre-se que, para José dos Santos Carvalho Filho[i], “o poder regulamentar não cabe contrariar a lei (contra legem), pena de sofrer invalidação. Seu exercício somente pode dar-se secundum legem, ou seja, em conformidade com o conteúdo da lei e nos limites que esta impuser” e que para Celso Antônio Bandeira de Mello[ii] “os regulamentos não podem aportar à ordem jurídica direito ou obrigação que já não estejam, na lei, previamente caracterizados e de modo suficiente, isto é, nela delineados, ao menos pela indicação dos critérios e balizamentos indispensáveis para o reconhecimento de suas composturas básicas”.
Como dito, além da doutrina (e aqui, em adição ao já mencionado Celso Antônio Bandeira de Mello[iii][iv], cite-se ainda Cirne Lima[v]), os nossos Tribunais (e, por todos, faremos remissão aos entendimentos do Supremo Tribunal Federal) inadmitem, conforme se pode ver abaixo, a validade de decretos regulamentares editados em caráter praeter legem:
“O princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal. O abuso de poder regulamentar, especialmente nos casos em que o Estado atua contra legem ou praeter legem, não só expõe o ato transgressor ao controle jurisdicional, mas viabiliza, até mesmo, tal a gravidade desse comportamento governamental, o exercício, pelo Congresso Nacional, da competência extraordinária que lhe confere o art. 49, V, da Constituição da República e que lhe permite ‘sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (…)’. Doutrina. Precedentes (RE 318.873-AgR/SC, Rel. Min. Celso de Mello). Plausibilidade jurídica da impugnação à validade constitucional da Instrução Normativa STN 01/2005”. (STF, AC 1.033-AgR-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25-5-2006, Plenário, DJ de 16-6-2006)
“É cediço na doutrina que ‘a finalidade da competência regulamentar é a de produzir normas requeridas para a execução de leis quando estas demandem uma atuação administrativa a ser desenvolvida dentro de um espaço de liberdade exigente de regulação ulterior, a bem de uma aplicação uniforme da lei, isto é, respeitosa do princípio da igualdade de todos os administrados’ (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. P. 336)” (STF, ADI 4.218-AgR, rel. min. Luiz Fux, julgamento em 13.12.12, Plenário, DJE de 19.02.13)
Sobre o caráter praeter legem da Resolução TC nº 245/2024 colha-se ainda o seguinte entendimento do Conselheiro Dirceu Rodolfo de Melo Júnior, em caráter obiter dictum, quando da prolação pelo Pleno do Acórdão T.C. nº 1532/2024 no julgamento do Processo nº 1854052-1: “uma resolução nada mais é do que o exercício do Tribunal de um poder implícito de regulamentar a lei dentro de suas competências. Então nós temos o poder-dever de regulamentar e o regulamento não pode ser jamais praeter legem, ou extra legem, ou citra legem. Tem que ser secundum legem, art. 84 da Constituição. Então é, por assim dizer, o modelo de legalidade que se encontra na Constituição. Salvo um caso ou outro, que estão lá previstos, em regra o regulamento tem que ser secundum legem, ou seja, tem que ser de acordo com a lei, é para retirar as plicas da lei, explicar a lei, mas não pode ir além, nem pode ser citra, nem extra, nem praeter legem. (…) Nesse caso, nesse caso específico, eu volto à questão do regulamento praeter legem. Eu entendo que esse regulamento é praeter legem, porque ele vai além do que diz a lei. Ele cria um marco temporal que não está na lei. E aí também o sentido de segurança jurídica. Se é uma coisa mais remota, quanto melhor que se aplique a prescrição trienal, por que a ideia não é segurança jurídica? Então, neste ponto e só nesse ponto, eu entendo que houve a prescrição. Porque não teríamos como, a partir de um ato normativo, reescrever a lei para criar um marco de modulação temporal”.
Assim, em que pese o expresso teor do art. 2º, § 2º da Resolução TC nº 245/2024, entendemos ser viável a aplicação da retroatividade benigna da prescrição trienal intercorrente no âmbito do TCE/PE.
[i] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 14ª Ed. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris. 2005, pág. 44.
[ii] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Poder” regulamentar ante o Princípio da Legalidade. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP, ano 8, n. 64, p. 145-152, jan./mar. 2016.
[iii] “(…) há inovação proibida sempre que seja impossível afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição já estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada. Ou, reversamente: há inovação proibida quando se possa afirmar que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam já estatuídos e identificados na lei regulamentada. A identificação referida não necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se reconheçam as condições básicas de sua existência em vista de seus pressupostos, estabelecidos na lei e nas finalidades que ela protege” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Poder” regulamentar ante o Princípio da Legalidade. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP, ano 8, n. 64, p. 145-152, jan./mar. 2016)
[iv] “(…) os regulamentos (…), se são perfeitamente prestantes e úteis para a simples delimitação mais minudente das providências necessárias ao cumprimento dos dispositivos legais, seriam gravemente danosos — o que é sobremodo claro em país com as características políticas do Brasil — se pudessem, por si mesmos, instaurar direitos e deveres, impondo obrigações de fazer ou não fazer. Deveras, opostamente às leis, os regulamentos são elaborados em gabinetes fechados, sem publicidade alguma, libertos de qualquer fiscalização ou controle da sociedade ou, mesmo, dos segmentos sociais interessados na matéria. Sua produção se faz apenas em função da vontade, isto é, da diretriz estabelecida por uma pessoa, o Chefe do Poder Executivo, sendo composto por um ou poucos auxiliares diretos seus ou de seus imediatos. Não necessita passar, portanto, nem pelo embate de tendências políticas e ideológicas diferentes, nem mesmo pelo crivo técnico de uma pluralidade de pessoas instrumentadas por formação ou preparo profissional variado ou comprometido com orientações técnicas ou científicas discrepantes. Sobre mais, irrompe da noite para o dia, e assim também pode ser alterado ou suprimido. São visíveis, pois, a natural inadequação e os imensos riscos que adviriam para os objetivos essenciais do Estado de Direito — sobreposse, repita-se, em um país ainda pouco afeito a costumes políticos mais evoluídos — de um poder regulamentar que pudesse definir, por força própria, direitos ou obrigações de fazer ou não fazer imponíveis aos administrados.” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Poder” regulamentar ante o Princípio da Legalidade. Revista Trimestral de Direito Público – RTDP, ano 8, n. 64, p. 145-152, jan./mar. 2016)
[v] “Supõe, destarte, a atividade administrativa a preexistência de uma regra jurídica, reconhecendo-lhe uma finalidade própria. Jaz, conseqüentemente, a Administração Pública debaixo da legislação que deve enunciar e determinar a regra de Direito” (LIMA, Cirne, Princípios de Direito Administrativo, 5a ed., Ed. RT, 1982, pág. 22)
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