Vivemos em uma era em que a informação circula mais rápido do que nossa capacidade de analisá-la. Vídeos curtos, reels e postagens virais se tornaram a principal fonte de notícias de grande parte da população. Um espaço que deveria ser símbolo de liberdade e democracia acabou se transformando em terreno fértil para a desinformação. Afinal, será que essa liberdade está sendo exercida com responsabilidade, ou virou palco onde a mentira corre mais rápido que a verdade?
A Constituição Federal de 1988 assegura a todos a liberdade de expressão, mas não garante a ninguém o direito de propagar notícias falsas, discursos de ódio ou incitar a violência. O princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, se choca diretamente com a cultura da desinformação. É nesse ponto que se revela o grande dilema: como proteger a liberdade sem permitir que ela se torne arma contra a própria democracia?
A desinformação, como fenômeno, não pode ser subestimada. Se, por um lado, a informação constrói, educa e conscientiza, por outro, a desinformação tem o poder de destruir reputações, manipular sociedades inteiras e até ceifar vidas. Um caso recente que ganhou grande repercussão foi o de uma jovem que acabou tirando a própria vida após ser alvo de uma fake news publicada no Instagram de uma página de entretenimento chamada Choquei. A postagem espalhou boatos cruéis e infundados que, em poucas horas, viralizaram e expuseram a vítima a um linchamento virtual. Esse episódio mostra, de forma trágica, como a mentira digital pode ultrapassar o campo do debate e causar danos irreversíveis à vida humana
Não se trata de um fato isolado. Durante a pandemia da Covid-19, milhões de pessoas foram expostas a informações falsas sobre vacinas e supostos “tratamentos milagrosos”. Estudos apontaram que comunidades que mais consumiam esse tipo de conteúdo apresentaram índices menores de vacinação, o que contribuiu diretamente para a perda de vidas que poderiam ter sido salvas. O poder da desinformação, nesse contexto, não foi apenas simbólico, mas físico, concreto e mortal.
Também na esfera política, a desinformação se revelou decisiva. Nas eleições de 2018 e 2022, investigações apontaram o uso massivo de disparos em massa por aplicativos de mensagens, espalhando mentiras que influenciaram a opinião pública e abalaram a credibilidade do processo democrático. A cada ciclo eleitoral, as fake news se apresentam como um inimigo invisível, capaz de moldar narrativas e inclinar decisões coletivas com base em ilusões.
No campo econômico, o estrago não é menor. Golpes virtuais que se aproveitam de anúncios falsos ou correntes manipuladoras prejudicam milhares de brasileiros todos os dias. Pessoas entregam dados bancários, senhas e até economias de uma vida inteira ao acreditar em mensagens fraudulentas disseminadas em redes sociais. A desinformação, nesse caso, rouba mais do que a verdade: rouba a segurança financeira, a confiança no mercado e a estabilidade de famílias inteiras.
Outros exemplos, nacionais e internacionais, reforçam essa realidade. Em 2016, durante o plebiscito do Brexit no Reino Unido, campanhas de desinformação nas redes sociais influenciaram milhões de eleitores com dados distorcidos sobre os impactos da saída da União Europeia. Já nos Estados Unidos, nas eleições de 2016, a interferência por meio da disseminação de fake news foi alvo de intensas investigações, com indícios de manipulação psicológica em larga escala. Esses episódios demonstram que a desinformação não reconhece fronteiras: é um desafio global, que ameaça democracias de diferentes continentes.
No Brasil, outro caso emblemático foi o de um boato sobre supostos sequestros de crianças em uma comunidade de São Paulo, que circulou pelo WhatsApp em 2017. A mentira levou moradores a lincharem uma mulher inocente, que acabou morrendo. Esse episódio mostra como a desinformação, quando associada ao medo coletivo, pode gerar violência direta, sem chance de defesa ou de contraditório.
Casos mais cotidianos também revelam o lado devastador da mentira digital. Famílias que deixam de vacinar seus filhos por acreditarem em correntes falsas, idosos que perdem aposentadorias em golpes financeiros, comunidades inteiras que entram em pânico diante de boatos sobre supostos crimes ou tragédias que nunca aconteceram. Todos esses exemplos traduzem, na prática, que a desinformação é capaz de alterar comportamentos coletivos e corroer laços de confiança social.
Mas é importante destacar que o mesmo poder que destrói pode também ser utilizado para construir. Informações corretas, disseminadas com rapidez, salvaram milhares de vidas durante a pandemia ao incentivar a vacinação e ao alertar sobre medidas de prevenção. Campanhas educativas de combate ao racismo, à violência contra a mulher e ao suicídio encontraram nas redes sociais um palco de alcance inimaginável há poucas décadas. Isso mostra que a informação, quando bem orientada, pode ser uma aliada da dignidade humana e do fortalecimento da democracia.
Do ponto de vista jurídico, o Supremo Tribunal Federal já enfrentou o tema ao julgar casos de notícias falsas associadas a campanhas eleitorais. Em decisões recentes, a Corte ressaltou que a liberdade de expressão não pode ser confundida com o “direito de mentir”, pois esse suposto direito não existe na ordem constitucional. O próprio artigo 220 da Constituição, que garante a livre manifestação do pensamento, deixa claro que a informação deve respeitar outros princípios constitucionais, como a honra, a intimidade e a proteção da infância. Esse entendimento demonstra que, embora a liberdade seja pilar do Estado Democrático de Direito, ela não é ilimitada.
Além disso, cresce no meio acadêmico e jurídico o debate sobre a chamada “responsabilidade compartilhada”. Não basta responsabilizar apenas o autor da mentira: é preciso exigir mais das plataformas digitais, que lucram com o engajamento de conteúdos falsos, e também promover a educação midiática dos cidadãos. A luta contra a desinformação não se vence apenas nos tribunais; ela se constrói também na sala de aula, nos veículos de comunicação sérios e na conscientização cotidiana de cada usuário da internet.
O que todos esses casos revelam é que a informação tem um poder imenso, um poder ambíguo, capaz de salvar ou de matar, de construir ou de arruinar. Quando bem utilizada, promove cidadania, conscientização e democracia; quando mal utilizada, gera medo, caos e destruição. Por isso, cabe ao Estado, às instituições e à própria sociedade desenvolver mecanismos de proteção contra a desinformação, sem abrir mão da liberdade de expressão.
É preciso reconhecer que a regulação responsável, o fortalecimento da educação midiática e a responsabilização de agentes que lucram ou se beneficiam com notícias falsas são medidas urgentes e indispensáveis. Não se trata de censura, mas de preservar o núcleo essencial da liberdade: o acesso à verdade. Sem ela, a democracia adoece, a sociedade se fragmenta e a dignidade humana fica vulnerável a ataques invisíveis, mas devastadores.
O desafio que se coloca é justamente esse: equilibrar liberdade e responsabilidade em um ambiente digital moldado por algoritmos que favorecem o sensacionalismo e a polarização. A Constituição nos lembra que nenhum direito é absoluto e que a convivência social exige limites proporcionais e razoáveis. Ao lidar com a desinformação, estamos defendendo não apenas a verdade, mas a própria vida.
Afinal, a informação é uma das armas mais poderosas da humanidade. Nas mãos certas, pode iluminar caminhos, educar povos e fortalecer democracias. Nas mãos erradas, pode manipular multidões, arruinar reputações e tirar vidas. Cabe a nós escolher qual desses caminhos queremos trilhar. E, se é verdade que a mentira corre rápido, é nosso dever garantir que a verdade nunca chegue tarde demais.
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