Bruno Augusto Paes Barreto Brennand

Raça, fenótipo e biopolítica: do eugenismo totalitário à fenotipagem inclusiva no Direito Brasileiro

Postado em 05 de novembro de 2025 Por Bruno Augusto Paes Barreto Brennand  Advogado, Professor de Direito Eleitoral e Direito Constitucional e membro da Rede Brasil de Governança – RGB Brasil

1 INTRODUÇÃO

A categoria “raça” atravessou séculos como conceito científico, moral e jurídico. Do determinismo biológico do século XIX às políticas afirmativas do século XXI, a humanidade oscilou entre o biologismo excludente e o sociologismo reparatório, ambos alicerçados na crença de que a aparência do corpo revela a essência do ser. No Brasil, país miscigenado e de fronteiras raciais fluídas, a identificação fenotípica adotada nas políticas de cotas reflete um paradoxo: rejeita a biologia, mas conserva a lógica da visibilidade. Já no regime nazista, a eugenia elevou essa visibilidade à condição de dogma estatal, em nome da pureza racial. O presente artigo busca demonstrar essa linha de continuidade estrutural entre ambos os paradigmas, sem ignorar as diferenças éticas e políticas entre exclusão e reparação.

2 RAÇA COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL E NÃO BIOLÓGICA

A moderna genética humana, notadamente nos estudos de Sérgio Danilo Pena (UFMG), criou tese da raça não como fato biológico. O autor demonstra que a variação genética entre indivíduos da mesma população é maior do que entre populações diferentes, evidenciando que “as raças humanas são ficções sociológicas, não realidades biológicas” (PENA, 2005).

No contexto brasileiro, a miscigenação diluiu fronteiras raciais. Como apontou Gilberto Freyre (1933), formou-se uma sociedade ambígua, na qual o mito da harmonia racial convive com o preconceito velado. Assim, o pertencimento racial no Brasil é determinado pelo olhar social, e não pela ascendência genética.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, especialmente na ADPF 186/DF (Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 26.04.2012), consolidou essa visão ao afirmar que “a discriminação racial no Brasil é fundada em traços fenotípicos percebidos socialmente”. O conceito jurídico de raça, portanto, é sociológico, não biológico.

  • O CRITÉRIO FENOTÍPICO E SUA APLICAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL

Nas políticas de cotas raciais (Lei nº 12.711/2012), o critério de identificação é o fenótipo, isto é, a aparência visível do indivíduo. As comissões de heteroidentificação, amparadas por decisões do STF e da Administração Pública Federal, avaliam elementos como cor da pele, textura do cabelo e traços faciais, sem recorrer a exames de DNA ou genealogia. O fundamento teórico é pragmático: se o racismo se manifesta pela aparência, a reparação deve atuar na mesma dimensão. Essa lógica foi reforçada no RE 597.285/RS (Rel. Min. Ayres Britto, j. 26.06.2009), que reconheceu a legitimidade das ações afirmativas de cunho racial.

Contudo, a prática tem revelado contradições epistemológicas e morais. Ao pretender combater o racismo pelo mesmo critério que o produz — a visibilidade — o Estado recria a autoridade do olhar como instrumento de poder, deslocando a fronteira entre inclusão e exclusão.

  • A EUGENIA NAZISTA: PUREZA RACIAL E BIOPOLÍTICA DO CORPO

O regime nacional-socialista elevou o conceito de raça ao estatuto de lei biológica. As

Leis de Nuremberg (1935) impuseram restrições civis a quem não provasse ascendência

“ariana pura”, por meio de certidões genealógicas e avaliações fenotípicas. Médicos e antropólogos mediam crânios, narizes, proporções faciais — práticas legitimadas por uma ciência racial pseudobiológica.

O “Ariernachweis” (certificado ariano) era instrumento jurídico de cidadania. O corpo e o sangue tornaram-se provas jurídicas de pureza, e o erro de avaliação era impossível de contestar.

Como observa Hannah Arendt (1951, p. 157), “a burocracia do mal consiste em transformar a vida em fórmula administrativa”. O nazismo fez do corpo um documento político, e do fenótipo, a sentença ontológica da pessoa.

  • PARALELOS EPISTEMOLÓGICOS: O OLHAR COMO CRITÉRIO DE VERDADE

Apesar das intenções opostas, o modelo brasileiro de heteroidentificação e o modelo nazista de eugenia compartilham uma estrutura epistemológica idêntica: o corpo como índice de verdade.

Ambos sistemas partem da mesma crença: o corpo fala uma verdade objetiva sobre o ser. O que muda é a moldura moral — a estética permanece como critério jurídico.

  • O ERRO DE AVALIAÇÃO E A POSSIBILIDADE DE REVISÃO

No regime nazista, o erro era ontologicamente impossível, pois a classificação racial era tida como expressão da verdade científica. Já o sistema de heteroidentificação brasileiro é administrativo e revisável. Há previsão de recurso administrativo, nova avaliação por comissão diversa e controle judicial (por mandado de segurança ou ação anulatória). Exemplo disso é o julgado do TRF-1, AC 1003147-41.2019.4.01.3900, e do TRF-4, processo 5020505-85.2018.4.04.7100, que asseguraram contraditório e ampla defesa ao candidato. Por incrível que parece a o método 

  • A FALÁCIA DO CRITÉRIO SOCIAL E O APAGAMENTO DA ANCESTRALIDADE

A substituição da ancestralidade — elemento histórico, genealógico e cultural — pelo critério fenotípico de condição social representa um desvio epistemológico que empobrece a compreensão da identidade racial no Brasil. Sob o pretexto de combater o racismo “como ele se manifesta”, o Estado brasileiro adotou um método que ignora a complexidade da formação do povo brasileiro, reduzindo-a a um julgamento superficial de aparência.

O antropólogo Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro (1995), advertiu que o Brasil é “um novo povo, mestiço na carne e no espírito”, produto de uma “transfiguração étnica e cultural única no mundo”. Para Darcy, a identidade nacional não pode ser segmentada em raças estanques, porque a matriz brasileira é uma síntese, e não um mosaico de separações. Ao insistir em critérios visuais, o Estado ressuscita categorias coloniais de cor, negando a própria teoria darcyniana da mestiçagem como força civilizatória.

7.1 A CRÍTICA ANTROPOLÓGICA

Darcy Ribeiro via na mestiçagem a resposta civilizacional à barbárie racial: o Brasil seria

“a primeira sociedade moderna fundada na fusão de raças, e não na segregação delas”.  

A política de heteroidentificação, ao contrário, promove uma re-racialização burocrática, reduzindo a identidade à pigmentação. Desconsidera a herança cultural e genealógica — o que o autor chamava de “etnicidade simbiótica” — e substitui o pertencimento histórico pela visibilidade social momentânea.

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Essa inversão subverte também a justiça: quem deveria ser reconhecido pela sua trajetória ancestral passa a ser julgado por sua aparência pública. O critério social tornase um simulacro de reparação, incapaz de distinguir entre o que é herança cultural e o que é condição estética transitória.

7.2 O EQUÍVOCO SOCIOLÓGICO

Do ponto de vista sociológico, o critério de “condição social” confunde classe com raça, transformando políticas raciais em instrumentos de compensação econômica. A consequência é uma dupla distorção: dilui a ancestralidade afro-indígena, que Darcy Ribeiro valorizava como núcleo formador do Brasil; e burocratiza o racismo, convertendo-o em ato administrativo, dependente do olhar de uma comissão.

Ao abdicar da genealogia, o Estado abdica também da história. A identidade deixa de ser herdada para ser atribuída, segundo circunstâncias visuais e pressões ideológicas. Ou seja ao bel prazer de quem comanda as instituições. 

7.3 A PERSPECTIVA FILOSÓFICA

Do ponto de vista filosófico-jurídico, o abandono da ancestralidade representa a ruptura com o princípio da verdade ontológica do indivíduo. O critério fenotípicosocial não busca a verdade — busca adequação política. É o triunfo da aparência sobre a essência, do discurso sobre a substância. Como observa Hannah Arendt, quando o Estado passa a definir o ser humano “por aquilo que ele parece”, a política substitui a verdade pela opinião — e abre caminho para novas formas de totalitarismo simbólico.

8 CONCLUSÃO

O percurso histórico revela que a transição do eugenismo totalitário à fenotipagem pseuda-inclusiva não rompeu totalmente a lógica do corpo como critério jurídico. O que mudou foi o significado moral, não o mecanismo epistemológico. O Direito, para ser verdadeiramente humano, deve libertar-se do império do olhar e retornar ao que lhe é próprio: a proteção da pessoa como valor ontológico, e não estético.

Assim, o caminho da verdadeira reparação não é a reafirmação da cor, mas o resgate da ancestralidade, como propôs Darcy Ribeiro: reconhecer o Brasil como “povo-síntese de três matrizes originárias”, e não como um arquipélago de tons de pele. Somente quando o Direito deixar de olhar a epiderme e passar a compreender a herança — biológica, cultural e espiritual — deixará de repetir, sob novas bandeiras, a velha lógica da segregação.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1976.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1933.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. São Paulo: Revista Ciências Sociais Hoje, 1984.

PENA, Sérgio Danilo. Humanidade sem raças? Revista Ciência Hoje, vol. 36, n. 214, 2005.

RiBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SOWELL, Thomas. The Vision of the Anointed. New York: Basic Books, 1995.

STF. ADPF 186/DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 26.04.2012.

STF. RE 597.285/RS. Rel. Min. Ayres Britto, j. 26.06.2009.

TRF1. AC 1003147-41.2019.4.01.3900. Rel. Des. Néviton Guedes.

TRF4. AC 5020505-85.2018.4.04.7100. Rel. Des. Vivian Caminha.

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