Sarah Gomes Fonseca Mesquita

Advocacia Pública, gênero e a violência simbólica sob o olhar de Beauvoir e Bourdieu

Postado em 30 de julho de 2025 Por Sarah Gomes Fonseca Mesquita Advogada municipalista, eleitoralista e criminalista. Atua como Procuradora-Geral Adjunta Municipal. Dedica-se ao estudo das estruturas do poder público à luz da justiça de gênero, com especial interesse nas práticas institucionais da advocacia pública.

A presença das mulheres nos espaços institucionais do poder público, especialmente no campo jurídico, ainda carrega marcas profundas de estruturas misóginas naturalizadas. A partir da minha vivência como procuradora municipal, proponho uma reflexão sobre essas dinâmicas, tendo como base o conceito de violência simbólica, desenvolvido por Pierre Bourdieu, e a perspectiva existencialista de Simone de Beauvoir.

A inserção das mulheres em posições de poder institucional representa um avanço inegável, mas ainda está longe de se consolidar como uma presença plenamente reconhecida. O direito, como campo historicamente masculinizado, ainda reproduz, de maneira muitas vezes discreta práticas de exclusão que limitam a atuação feminina e desqualificam sua autoridade dentro do meio jurídico. 

É a partir de uma experiência concreta que essas questões se tornam mais visíveis. Ao olhar para o cotidiano na advocacia pública, percebe-se formas simbólicas de violência que operam nos bastidores do poder e que precisam ser enfrentadas. Pensar essas violências a partir da filosofia de Simone de Beaouvoir e da sociologia crítica de Pierre Bourdieu é um caminho para analisar as barreiras invisíveis que ainda estruturam a advocacia pública exercida por mulheres. 

 “Não se nasce mulher: torna-se mulher.” A célebre frase de Simone de Beauvoir nos conduz ao reconhecimento de que o ser mulher em uma sociedade estruturada pelo patriarcado não é uma condição natural, mas uma construção permeada por expectativas, restrições e lutas silenciosas. No campo da advocacia pública, essa construção ganha contornos ainda mais específicos: a mulher que ocupa um espaço institucional de poder precisa, todos os dias, reafirmar sua legitimidade, seu saber e, claro, sua voz.

Atuar como procuradora municipal é exercer uma advocacia complexa e estratégica. Requer domínio técnico, sensibilidade institucional e um compromisso real com o interesse público. Mas para nós, mulheres, especialmente aquelas que fogem dos padrões esperados, seja por sermos jovens demais, negras, lésbicas, nordestinas ou simplesmente mulheres que ousam falar alto, esse exercício com certeza não vem sem custo. A cada parecer, a cada reunião, a cada assinatura, é como se precisássemos provar, mais uma vez, que estamos aptas a estar onde estamos.

A teoria de Pierre Bourdieu se torna uma lente potente para compreender o que enfrentamos como mulheres na advocacia. O sociólogo francês nos oferece o conceito de violência simbólica, como uma forma sutil e muitas vezes invisível de dominação que opera nas entrelinhas do discurso, nas posturas, nos gestos e nas normas que, embora pareçam neutras, reproduzem hierarquias históricas de gênero, de classe e de raça.

A violência simbólica não grita. Ela sussurra. É muito discreta. Manifesta-se quando a fala de uma procuradora é interrompida por um colega que “só quer complementar”, quando sua opinião técnica é revista com desconfiança, enquanto a de um homem é acolhida como definitivo, quando o domínio jurídico é atribuído à “intuição” ou à “sensibilidade feminina”, como se o rigor técnico fosse um traço naturalmente masculino. O que não é verdade. Essas formas de violência não aparecem nos boletins de ocorrência, mas moldam  carreiras.  Silenciam  potenciais.  Adoecem.  Adoecem  muito.

No serviço público, onde a burocracia se estrutura por formalidades e hierarquias, a violência simbólica encontra terreno fértil. Por isso, a atuação de uma mulher nesses espaços precisa ser também um gesto político. E, para mim, ser procuradora é justamente tensionar esses códigos, é me policiar, é lembrar que o meu trabalho não pode ser apenas técnico, mas um instrumento que pode sustentar políticas públicas mais justas, inclusivas e humanas, sobretudo para nós, mulheres.

Não se trata de romantizar a sobrecarga, nem de aceitar o lugar da exceção como destino. Trata-se de denunciar, resistir e abrir caminho para que as próximas mulheres que virão encontrem um ambiete mais acolhedor e ocupem o lugar que as pertencem. 

É importante destacar que quando uma mulher fala com autoridade em ambientes onde historicamente foi calada, ela não está apenas exercendo sua função, ela está reescrevendo o sentido daquela função. E isso é potente. É forte. É um ato político.

Simone de Beauvoir nos ensinou que a opressão feminina se mantém pela repetição do silêncio e da obediência. Bourdieu nos alerta que o poder simbólico só se sustenta enquanto for aceito como natural. Combinar essas duas visões é compreender que, para além das leis e dos regimentos, nossa presença na advocacia pública é um ato de ruptura.

E ainda que muitos não percebam, toda vez que uma mulher se senta à mesa de decisões institucionais e recusa o papel de coadjuvante, algo se desloca. A estrutura se move. A história muda. E, com ela, um novo direito começa a nascer, mais justo, mais feminista, mais comprometido com a transformação radical das estruturas que sempre tentaram nos excluir. Que possamos ocupar todos os espaços de poder.

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