INTRODUÇÃO
Questões que anteriormente se restringiam ao âmbito técnico-jurídico passaram a ser amplamente discutidas na esfera pública, gerando novos contornos ao debate jurídico. Nessa perspectiva, o clamor popular, impulsionado pela visibilidade proporcionada pela cobertura midiática, tem se mostrado cada vez mais relevante nas decisões proferidas pelo Poder Judiciário, mas que, muitas vezes, compromete a celeridade do processo. De igual modo, o hábito da leitura, que tem se tornado cada vez mais escasso, exerce um papel significativo quando falamos sobre cidadania e sobre o clamor público, pois, quando há a falta de compreensão crítica, fator prejudicial à capacidade do cidadão de discernir acerca de manchetes midiáticas, podendo levar o público à desinformação, as tão faladas fake news que, além de dificultar o processo democrático, dificulta o combate a crimes, além de permitir que o público se deixe levar pelas manchetes, criando interpretações e conexões que o permita visualizar tal fato de um modo específico, no qual esse assuma uma postura pessoal em relação à matéria.
O DECLÍNIO DA LEITURA CRÍTICA E A CIDADANIA VULNERÁVEL
A cidadania, um dos princípios fundamentais que regem a República Federativa do Brasil, é imprescindível para o desenvolvimento democrático de um país. Sabe-se que o conceito de cidadania foi ampliado com o passar do tempo, com isso, o cidadão passou a adquirir, além dos direitos civis, os direitos sociais e os direitos políticos, e obter, com o último, a possibilidade de determinar quem vai exercer o poder estatal e, muito além disso, controlar como os seus representantes o exercem.
A leitura, a base da educação, um direito social de todo cidadão, tem um papel muito significativo para o exercício da cidadania, pois essa possibilita o desenvolvimento da compreensão crítica, o aprimoramento da escrita e possibilita a participação ativa do cidadão em sociedade, porém, com a chegada da era digital, o hábito da leitura tem desaparecido aos poucos, causando danos a esses processos básicos. Conforme a 6ª edição da “Retratos da Leitura no Brasil”, realizada pelo Instituto Pró-Livro, o percentual de leitores do Nordeste nem chega a 50% (cinquenta por cento), constatando, do ano de 2019 para o ano de 2024, uma redução de 5% (cinco por cento) em relação ao percentual de leitores nesta região. Portanto, a partir do momento em que há a ausência dessa compreensão crítica e, consequentemente, da participação ativa em sociedade, os cidadãos não se encontram capacitados para processar e utilizar das informações de que têm acesso, nem como discernir sobre a procedência dessas, deixando-se enganar pela desinformação deliberada.
A CONSTRUÇÃO MIDIÁTICA DO CLAMOR PÚBLICO E O ÉDITO CONDENATÓRIO
Éditos condenatórios, termo definido como sentenças condenatórias, oriundos da pressão social e da mídia. A reação exacerbada do público diante de determinadas matérias, moldada e intensificada através dos grandes veículos de comunicação e figuras de destaque, pressiona o Poder Judiciário a emitir decisões condenatórias rápidas, ainda que sem a devida fundamentação jurídica, transformando a sentença em mero ato formal para satisfazer a opinião pública.
Evaristo de Moraes aponta, em seu livro Problemas de Direito Penal e de Psychologia Criminal, que juízes, para atender a esse clamor público, proferem decisões sem a adequada fundamentação, substituindo a lei pela voz do povo. Além disso, a construção midiática do clamor público acaba por transformar julgamentos em espetáculo público, no qual a própria mídia profere sentenças antes mesmo do devido processo, que rompe o equilíbrio do devido processo legal, visto que esse visa proteger o cidadão contra eventuais excessos ou arbitrariedades do Judiciário, transformando o juiz em um simples reflexo da voz popular, o que pode expor o acusado a julgamentos passionais.
Com isso, o clamor popular, delineado e acentuado pela imprensa, compromete princípios constitucionais, tais como o do devido processo legal, da presunção de inocência e da imparcialidade do juiz, alimentando os éditos condenatórios, no qual a emoção popular se sobrepõe sobre os embasamentos jurídicos.
A PRESSÃO MIDIÁTICA SOBRE O PODER JUDICIÁRIO
A opinião pública exerce um papel importante quando falamos de democracia: é criada uma visão de expectativas em relação a julgamentos de crimes considerados cruéis e de grande repercussão na mídia, embora o princípio da imparcialidade seja o critério a ser guiado (CF/88, art. 5º, XXXVII e LIII).
É evidente que, nesses casos, a crença da sociedade e a sede por justiça acabam influenciando a forma como esses crimes são julgados, muitas vezes de forma errônea, não seguindo o que a lei manda, como no caso da Escola Base, uma instituição de ensino localizada no bairro da Aclimação, na cidade de São Paulo, no ano de 1994, no qual uma emissora de televisão divulgou, de forma sensacionalista, denúncias de mães acusando os ex-donos da escola de cometerem abuso sexual contra seus filhos de 4 anos, levando a uma condenação precipitada. Todavia, após investigações, o inquérito policial foi arquivado devido à falta de provas, e a emissora foi condenada a pagar uma multa de R$ 100 mil em danos morais por ter manchado a imagem dos antigos proprietários. É notável que a ânsia por uma resposta imediata acabou gerando insegurança judicial, mostrando que a pressão social, mesmo que possa trazer celeridade processual, torna-se prejudicial, levando ao chamado populismo penal midiático, termo utilizado para expor como a opinião pública é conduzida por manchetes tendenciosas.
Em razão disso, tal exposição compromete a imparcialidade e a segurança judicial, resultando em decisões pautadas mais pelo midiático do que pelo devido processo legal.
A DESINFORMAÇÃO COMO ARMA NA PERCEPÇÃO DE CASOS JUDICIAIS
A relação entre a mídia e a opinião pública tem gerado prejuízos no âmbito dos processos judiciais no Brasil. Observa-se, de forma recorrente, um fenômeno que antecipa juízos antes mesmo da análise dos fatos, resultando em um verdadeiro édito condenatório, termo usado para se referir à condenação social que acontece antes da decisão judicial.
A razão pela qual a construção midiática é potencializada é a superficialidade no consumo de informações, uma vez que a sociedade, cada vez mais, busca conteúdos rápidos e simplificados, sem uma análise aprofundada. Em determinadas situações, a notícia até apresenta uma análise mais investigada, mas, para atrair a atenção do leitor, recorre-se a uma espécie de marketing sensacionalista, com chamadas curtas e apelativas, semelhantes às usadas em redes sociais como o Instagram. O conteúdo completo e detalhado, em geral, é deixado para um link separado, embora nem todos se interessem em acessá-lo.
A sociedade vive atualmente na chamada era da dopamina, em que a busca por estímulos rápidos prevalece sobre a reflexão mais cuidadosa. É inegável que a falta de leitura no país vem se tornando cada vez mais preocupante. Segundo dados da pesquisa Retratos da Leitura, o Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria) ouviu 5.504 entrevistados durante visitas domiciliares em 208 municípios entre 30 de abril e 31 de julho de 2024. Foi registrado que, nos últimos 4 anos, tivemos uma redução de 6,7 milhões de leitores em todo o território nacional. O que compromete o senso crítico e fortalece a propagação de fake News, validando discursos reducionistas que se afastam da análise plausível.
A situação ocorrida recentemente envolvendo notícias falsas sobre o Pix é um exemplo concreto de como isso acontece. Em 2024, a Receita Federal ampliou o monitoramento das movimentações por meio de fintechs, empresas financeiras que oferecem serviços usando tecnologia digital, fixando o limite mensal de R$ 5 mil para pessoas físicas e R$ 15 mil para pessoas jurídicas. Tal medida planeja deflagrar lavagem de dinheiro e crimes associados a organizações criminosas. Todavia, no início de 2025, houve uma intensa propagação de informações falsas que tomou conta das mídias sociais, alegando que o governo pretendia taxar o pix. Inúmeros posts e vídeos alastraram informações infundadas, aproveitando-se da falta de hábito de análise das pessoas e da não verificação da veracidade dos fatos. A Receita Federal recebeu o maior ataque da história dela, de mentiras, de fake News, o que atrapalhou o andamento das investigações e beneficiou o crime organizado. Esse contexto revela o quão grave é a falta de percepção sobre os impactos da disseminação de notícias falsas e como a opinião pública é moldada pela manipulação. Diante disso, essa pressão midiática interfere no meio judicial, ainda que de forma indireta, isso pode gerar decisões equivocadas e sem fundamento em determinados casos, ocasionando fragilidade judicial e desconsiderando o que determina a lei.
No âmbito do Tribunal do Júri, a situação torna-se ainda mais preocupante, pois os jurados também podem estar inseridos nesse contexto e, assim, serem facilmente influenciados por essa contaminação de desinformação. Em vez de avaliarem os casos com base nos autos, podem decidir movidos pelo clamor midiático e pela opinião popular, acreditando que, se não acompanharem a maioria, irão contra os bons costumes e acabaram sendo julgados pela própria sociedade, a sociedade está igualmente alienada. Cria-se, assim, um ciclo vicioso de grandes impactos, inclusive contra direitos fundamentais de outras pessoas. Diante disso, a leitura crítica e o desenvolvimento do senso crítico são essenciais para evitar a propagação desse problema.
A RESPONSABILIDADE CIVIL DA IMPRENSA E OS LIMITES DA INFORMAÇÃO
A liberdade de expressão é um dos direitos e deveres individuais e coletivos expressos no artigo 5°, inciso IV, bem como no inciso IX, da Constituição Federal, porém, esse não se trata de um direito absoluto. O Recurso Extraordinário n° 1.075.412 – Tema 995 pelo Supremo Tribunal Federal, trata sobre a responsabilidade de jornal pela publicação de entrevista em que o entrevistado acusa uma pessoa de crime quando já se sabia da sua inocência, e define situação excepcional em que as empresas jornalísticas podem ser responsabilizadas, em momento posterior à divulgação das informações, já que essas não devem ser limitadas antecipadamente, pois caracterizaria censura, o que não pode ocorrer, visto que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, cientifica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, de acordo com o disposto no artigo 5°, inciso IX, da CF/88. Ademais, o Supremo decidiu que, em regra, a responsabilização pela falsidade imputada a outrem no momento da entrevista é do entrevistado, porém, comprovando-se o dolo efetivo ou culpa grave da empresa jornalística na época da divulgação da matéria, essa pode ser condenada ao pagamento de indenização.
Além disso, vale ressaltar que, apesar do jornalista ter o dever de investigar os fatos que deseja publicar, não se pode exigir que a mídia só divulgue fatos após ter certeza de sua veracidade, pois “impor tal exigência à imprensa significaria engessá-la e condená-la a morte”, de acordo com a Ministra Nancy Andrighi no Recurso Especial n° 984.803. Porém, quando se transforma um fato em notícia é necessário escolher quais elementos destacar para que a narrativa faça sentido, e essa escolha se apoia em diversas formas de pensar que levam o público a enxergar o acontecimento de um jeito específico, e isso diz respeito ao enquadramento jornalístico. O enquadramento, segundo Erving Goffman, é uma ideia usada para entender como cada indivíduo se envolve de maneira pessoal em uma determinada situação social, por isso, quando uma informação é divulgada na mídia, ela pode fazer com que as pessoas criem interpretações e conexões que podem até influenciar a forma como elas entendem a si mesmas, assim como a sociedade em que vivem.
Com isso, percebe-se a importância da educação midiática, juntamente com o equilíbrio da linguagem em matérias jornalísticas, com o objetivo de trazer clareza, objetividade e transparência ao público, como também do incentivo à leitura, não apenas por meio de ações governamentais, mas também através de iniciativas em escolas, universidades e no âmbito familiar.
CONCLUSÃO
A espetacularização dos processos penais, amplificada pela cobertura midiática e pela opinião das massas, tende a fragilizar princípios fundamentais como a presunção de inocência, o devido processo legal e a ampla defesa. Nesse contexto, a pressão social exercida pela opinião pública pode induzir o Poder Judiciário a decisões passionais, em detrimento da razão jurídica, o que coloca em risco a própria estrutura do Estado Democrático de Direito.
Convém salientar, a independência judicial deve ser preservada, ao mesmo tempo em que o Poder Judiciário se mostra mais transparente e acessível, comunicando seus fundamentos de forma clara e compreensível à sociedade. A transparência, quando exercida com responsabilidade, não se confunde com submissão à opinião pública, ao contrário, constitui um mecanismo de legitimação das decisões e de combate à desinformação, especialmente em tempos de excesso informacional e fake news.
Ademais, a solução não se restringe às esferas institucionais. É fundamental investir na educação jurídica básica, por meio do incentivo à leitura crítica e da implementação de projetos de extensão em universidades que aproximem o saber jurídico da comunidade. A democratização do conhecimento contribui para a formação de cidadãos mais conscientes, capazes de analisar criticamente os discursos midiáticos e de compreender a lógica do sistema de Justiça, reduzindo a vulnerabilidade da opinião pública a julgamentos precipitados.
Assim, a superação dos efeitos nocivos do tribunal da mídia depende de um esforço conjunto: da imprensa, que deve assumir maior responsabilidade ética na divulgação das informações; do Poder Judiciário, que deve preservar sua independência sem abrir mão da transparência e da imparcialidade; e da sociedade, que deve ser educada para o exercício consciente de seus direitos e deveres. Somente nesse caminho será possível construir um ambiente democrático mais equilibrado, em que a informação circule de maneira responsável e a razão jurídica prevaleça sobre a emoção coletiva, garantindo que o Judiciário cumpra seu papel de guardião das liberdades fundamentais.
REFERÊNCIAS
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