Natali de Moura Nascimento

Quantas sentenças cabem em uma vida?

Postado em 17 de dezembro de 2025 Por Natali De Moura Nascimento Advogada, mestranda em Direitos Humanos pela UFPE, membro da Comissão de Defesa da Criança e do Adolescente e atuante no enfrentamento à violência de gênero com perspectiva interseccional.

Nascer mulher em um país como o Brasil é ter a certeza de uma vida marcada por múltiplas sentenças. A primeira sentença é a de morte, uma vez que matar mulher no Brasil se tornou algo corriqueiro, aparentemente parte do cotidiano. Todos os dias nasce uma mulher, ao mesmo tempo todos os dias morrem mulheres vítimas de feminicídio, vítima do ódio e de uma sociedade machista. Além disso, temos diariamente mulheres vítimas de violência doméstica que, entre suas diversas camadas, seja ela psicológica, física, patrimonial, moral e sexual, ainda enfrentam a possibilidade de um feminicídio, tendo suas vidas ceifadas por motivos banais.

A segunda sentença é a do julgamento. A sociedade impõe à mulher uma sentença perpétua de julgamentos: como se portar, como vestir, como manter um relacionamento, como educar seus filhos e até que carreira profissional seguir. Para a mulher, os olhares são sempre voltados com um espírito condenatório. Em cada decisão que ela tomar em sua vida haverá uma sociedade pronta para condená-la por sua escolha ou até pela falta dela. Nos casos de feminicídio e violência doméstica, temos ainda uma sociedade conivente, que relativiza agressões e reforça a ideia da mulher dominada, daquela que deve dar uma segunda chance ao agressor. Nesse enredo, a religião também exerce influência, com o ideal do casamento feliz ou do relacionamento que “tudo suporta”, frequentemente usado como justificativa para que mulheres permaneçam em ciclos de violência. Essa lógica contraria qualquer forma de fé, pois a violência ultrapassa qualquer expressão religiosa. Assim surge a terceira sentença, a religiosa, que leva muitas mulheres a manterem relacionamentos que podem custar-lhes a vida.

Não podemos normalizar a morte de mulheres como se fossem objetos descartáveis, passíveis de serem jogados fora e trocados como roupas velhas. Naturalizar essas mortes é admitir que falhamos enquanto sociedade. É dizer que a mulher vale menos por ser mulher!

Ao analisar situações de violência doméstica, é impossível deixar de mencionar a interseccionalidade. Raça e classe social exercem influência alarmante nesse contexto. Além da falta de redes de apoio e de pessoas com quem contar, o que agrava essas situações e leva mulheres a acreditarem que não têm escolha ou saída, mesmo quando nem percebem que são vítimas.

Infelizmente, para mulheres negras acrescenta-se ainda a sentença da cor: 63,6 por cento das vítimas de feminicídio no Brasil eram mulheres negras. Oito em cada dez mulheres negras foram assassinadas dentro de casa por companheiros ou ex-companheiros.

Ser mulher no Brasil é sair de casa sem saber se retornará em paz. É se relacionar sem a certeza da própria segurança, ela está o tempo todo com a vida por um fio, pois pode ser morta; pode morrer atropelada, arrastada, asfixiada, queimada, esfaqueada, com tiro à queima-roupa, afogada e de tantas outras formas desumanas e cruéis quanto a violência dos agressores possa alcançar. Nesse cenário, o senso de humanidade desaparece.

Isabele Gomes de Macedo foi condenada à morte por seu companheiro. Não apenas ela, mas também seus quatro filhos, incluindo um que ainda estava em sua barriga. Ela não teve o direito de se despedir de seus familiares e amigos, não pôde ver seus filhos crescerem. Seus filhos também não tiveram o direito à infância ou a ver a vida passar e se tornarem adultos. A alegação de que o algoz estaria embriagado no momento do crime não o isenta da responsabilidade; não é desculpa para matar sua companheira e seus filhos pequenos. Esse caso, ocorrido na Região Metropolitana do Recife, apenas reforça o que ressaltamos até aqui: as mulheres são condenadas e acumulam inúmeras sentenças em uma única vida. E a sociedade certamente questionará: “Por que ela não saiu antes? Não havia sinais?”.

Cabe a nós termos sensibilidade para compreender contextos, particularidades e situações de cada mulher neste país. Não nos cabe julgar uma realidade que não vivemos; cabe-nos apoiar as mulheres para que tenham uma vida plena, uma vida verdadeiramente vivível.

Taynara Souza Santos teve as duas pernas amputadas após ser atropelada e arrastada por mais de um quilômetro por um carro conduzido pelo ex-namorado em São Paulo. Esse absurdo vivido por Taynara mostra que “sair” do relacionamento não garante à mulher a certeza de uma vida plena. É como se mais uma sentença recaísse sobre ela, a sentença de não ser permitida a viver após o término, como se o martírio fosse perpétuo.

Por fim, é importante refletirmos: em novembro deste ano, parlamentares da Itália aprovaram por unanimidade um projeto de lei que define o feminicídio como crime específico, punível com prisão perpétua. Uma legislação semelhante resolveria a monstruosidade do feminicídio no Brasil? Será que educação desde a infância voltada a esse tema contribuiria a curto e longo prazo? Será que informação, apoio verdadeiro e políticas públicas eficientes não ajudariam? Será que penas mais rígidas seriam eficazes? Será que uma sociedade menos machista não seria o caminho?

São muitas perguntas, muitos “serás”, mas apenas uma certeza permanece: AS MULHERES NÃO MERECEM MORRER. TEMOS DIREITO À VIDA. NENHUMA DE NÓS DEVERIA SER SENTENCIADA A SER A PRÓXIMA.

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