Nós, operadores do Direito, ensinamos há séculos que mentir tem preço. Mas algo mudou. E não foi só a tecnologia. Foi a linguagem. Quando um cliente chega ao escritório com os olhos vermelhos porque alguém disse algo falso sobre ele na internet, ele não fala em “fake news”. Ele fala em mentira. Fala com raiva e com a clareza de quem foi lesado. Porque mentira dói! “Fake news”? Soa até como um termo que pode ser negociado, modulado, tratado com menos gravidade.
O Código Penal brasileiro, na Seção II do Capítulo V do Título VII, traz os crimes contra a honra. Não há lá nenhuma menção a “fake news”. O que existe é difamação, calúnia e injúria. São crimes sérios que mexem com a reputação, com a integridade moral e com a vida das pessoas. Têm penas. Têm consequências.
Quando escolhemos chamar esses atos de “fake news”, nós estamos fazendo algo muito mais sutil e muito mais grave do que parece: estamos deslocando a responsabilidade moral. Um advogado que usa o termo “fake news” em um parecer jurídico está construindo uma narrativa que desliza para a relatividade. “Fake news” virou sinônimo de “informação discutível”, de “narrativa alternativa” ou de “perspectiva diferente”, e isso é extremamente preocupante, tendo em vista que, no nosso país, segundo dados do Indicador de Analfabetismo Funcional divulgados em maio deste ano, três em cada dez brasileiros com idade entre 15 e 64 anos não sabem ler e escrever ou sabem muito pouco a ponto de não conseguir compreender pequenas frases ou identificar números de telefones ou preços.
A linguagem não é inocente no Direito. É a sua matéria-prima. Quando dizemos que alguém “cometeu um crime”, sabemos exatamente o que estamos afirmando. Há responsabilidade. Há culpa. Há consequência. Quando dizemos “disseminou ‘fake news’”, deixamos escapar uma mensagem diferente. Talvez seja uma brincadeira de internet. Talvez uma exageração. Ou talvez um boato. Ou seja, uma ‘coisa’ sem contornos claros.
O fardo do eufemismo jurídico
O termo “fake news” nasceu com uma aparência de cientificidade, de análise. Nasceu em ambientes acadêmicos para descrever um fenômeno novo: a disseminação em massa de informações falsas nas redes sociais. Tinha uma certa utilidade descritiva, uma precisão metodológica. Tudo bem até aí. O problema é que essa terminologia vazou para a linguagem ordinária e, perigosamente, para a linguagem que muitos profissionais juristas vêm utilizando. E, quando a linguagem jurídica adota um termo de menor gravidade para descrever um ato de maior gravidade, nós temos um problema de justiça.
Porque lei é feita de palavras. Sentença é feita de palavras. Culpa é construída com palavras. Se chamamos de “fake news” o que deveria ser chamado de “difamação”, por exemplo, estamos criando uma zona cinzenta entre o que é criminoso e o que é tolerável ou, até mesmo, aceitável.
A responsabilidade que foge pelo cano do eufemismo
Aqui está o ponto: nós, juristas, temos uma responsabilidade com a clareza. Com a precisão linguística. Com a honra das palavras que usamos. Uma outra pessoa que inventa histórias falsas sobre alguém e as publica nas redes está cometendo um crime contra a honra. Não está gerando “conteúdo desinformativo”. Está mentindo e provocando danos.
Quando adotamos o termo “fake news”, nós estamos, consciente ou inconscientemente, criando uma cortina de fumaça sobre a responsabilidade. É mais fácil derrotar a “desinformação” do que punir a “mentira”. É mais fácil clamor por “fact-checking” (checagem da verdade) do que exigir condenação penal. É mais fácil falar de “combate a ‘fake news’” do que falar de “processos por calúnia”. Um problema tratado como questão social parece menor do que um problema que deveria ser tratado na esfera jurídica.
O que sobra quando a verdade sai do plano da linguagem
Existe um momento no Direito Processual em que a verdade material importa. Quando você está diante de um juiz, quando você está reconstruindo os fatos de um caso, a verdade é binária: ou o réu estava lá ou não estava; ou ele disse aquilo ou não disse; ou o documento é autêntico ou é falso. Não há espaço para “fake news no tribunal. Há prova ou falta de prova.
Então por que, fora dos tribunais, permitimos que a linguagem se dissolva? Por que deixamos que a responsabilidade se dissipe em um termo tão vago?
A resposta, creio, tem a ver com conforto. É mais confortável viver em um “mundo de ‘fake news’” do que em um mundo de mentiras criminosas. “Fake news” sugere que é um problema coletivo, difuso, e, talvez, até inevitável. Mentira sugere que alguém específico fez algo especificamente grave e que deve ser punido.
Mas nós somos juristas. Nossa profissão foi fundada exatamente na ideia de que essas distinções importam. Que as palavras carregam peso. Que a precisão linguística, dentro de seus limites, é justiça.
Chamando a ‘coisa’ pelo nome
Faz-se necessário destacar que esse texto não sugere que abandonemos o termo “fake news” da academia ou da sociologia. Esses campos têm espaço para análises multidisciplinares, para termos descritivos e para conceitos que capturam fenômenos complexos. Faz sentido falar em “ecossistema de ‘fake news’” quando estamos analisando como a desinformação se propaga em redes sociais.
Mas, quando um jurista está analisando responsabilidade legal, quando um juiz está decidindo sobre dano moral, ou quando um advogado está orientando um cliente sobre seus direitos, todos eles tê a obrigação de voltar às palavras que nossa profissão compreende, isto é, às palavras que carregam consequência legal.
Alguém que inventa uma história falsa sobre você e a espalha é responsável por um crime contra sua honra. A pessoa que sofre o dano tem o direito de processar, de exigir indenização, de ver um juiz declarar a falsidade e de impor uma sanção. Essas são palavras que o ordenamento jurídico compreende. Essas são palavras que funcionam. “Fake news” é vago demais para carregar esses pesos.
O humano dentro das palavras
Mas há algo mais humano nisso tudo, algo que é de extrema importância deixar claro: quando alguém mente sobre você, você não sente “fake news”. Você sente traição. Você sente raiva. Você sente que sua verdade foi violada. Porque a verdade sobre quem é você é sagrada. É fundamental!
A responsabilidade jurídica existe para proteger exatamente isso: o direito de cada pessoa de existir com sua reputação intacta, de não ser vítima de mentiras e de ter a verdade sobre si mesma respeitada. Quando nós, juristas, falamos em “fake news” em vez de “mentira”, nós estamos deixando escapar esse sentimento legítimo de proteção.
Uma pessoa que chega a um escritório e diz “mentiram sobre mim” merece que o sistema jurídico trate isso com a gravidade que o termo original carrega. Não deveria passar por uma tradução para “fake news”. Deveria ir direto para o coração do sistema: responsabilidade, reparação, justiça.
Quando alguém mente – e especificamente, quando alguém mente de forma a lesionar a honra de outra pessoa e dissemina essa mentira – existe um nome para isso no código penal. E não é “fake news”. Todo jurista sabe disso. As pessoas leigas sabem. A verdade sabe disso. Talvez seja hora de começarmos a refletir essa realidade simples. Direito sem clareza é apenas poder sem freio.
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