“O foro por prerrogativa de função, apelidado de foro privilegiado, é um mal para o Supremo Tribunal Federal e para o país”.[1] Proferida ainda em 2016, essa afirmação do ministro Luis Roberto Barroso sintetiza as razões que fizeram o STF limitar as hipóteses de incidência da prerrogativa de foro em decorrência da função.
A primeira mudança emblemática ocorreu em 1999, quando o STF cancelou o enunciado da Súmula n.º 394[2] e passou a compreender que o término ou a perda do cargo faz cessar a competência do tribunal no qual o agente possuía a prerrogativa de foro. Em 2018, justamente sob a relatoria do ministro Barroso, o STF foi além e passou a declarar que o texto “infrações penais comuns”, previsto no art. 102, I, “b”, da Constituição, deveria ser lido como “infrações relacionadas ao exercício das funções”.[3]
Por trás da restrição das hipóteses de incidência da prerrogativa de foro e da vedação à prorrogação da competência (concretização de um critério temático e temporal), eram evidentes as razões políticas: não se aguentava o acúmulo de processos nos tribunais e a pressão social atrelada aos casos de grande repercussão.
Tanto à época da última reviravolta jurisprudencial[4] quanto recentemente,[5] argumentamos que nem mesmo a “interpretação teleológica” era capaz de chancelar a restrição das hipóteses de incidência da prerrogativa de foro promovida pelo STF. Em março deste ano, o tema voltou à ordem do dia. Por meio do julgamento do Habeas Corpus n.º 232.627/DF e da Questão de Ordem no Inquérito n.º 4.787, a Corte restaurou o raciocínio consagrado pela Súmula n.º 394 e passou a definir que a prerrogativa de foro em razão da função subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício. O acórdão determina que esse novo entendimento deverá ser aplicado a todos os processos em curso, ressalvada a validade dos atos praticados com base no raciocínio anterior.
A brevidade deste espaço não nos permite examinar o acerto da conclusão tomada pelo STF quanto ao mérito da questão debatida. Pretendemos apenas trazer duas ponderações sobre os efeitos promovidos pelo novo entendimento do Supremo.
A primeira decorre da ausência de enfrentamento, no novo acórdão paradigma, sobre a existência de possíveis hipóteses de exceção à regra concretizada. Para que se fique com um exemplo: a Corte Especial do STJ vem conferindo tratamento específico aos desembargadores e ex-desembargadores, declarando-se competente para julgá-los mesmo nos casos em que são acusados da prática de crimes que não guardam relação com a função, mas incompetente para julgar aqueles que se aposentam antes da conclusão da instrução. A nova interpretação dada pelo critério temporal também se aplicará a esses casos? O que o STJ dirá no exercício da sua competência constitucional originária?[6]
A segunda ponderação tem como causa a ausência de reflexão pelo STF sobre as consequências que o novo entendimento imporá em sua própria jurisprudência. Inconformado com a Lei n.º 10.628/02, editada em resposta ao cancelamento da Súmula n.º 394, o STF declarou inconstitucional dispositivo que apregoa justamente o entendimento defendido por ele hoje.[7] A coisa julgada formada no julgamento da ADI 2.797-2/DF se tornou, enfim, inconstitucional? Só o Supremo poderia interpretar a Constituição da maneira que passou a interpretar neste ano, como fez à época,[8] por que não o fez a partir de uma declaração da constitucionalidade do art. 84, § 1º, do CPP?
Questionamentos como esse impõem o aprofundamento das reflexões sobre o tema, com a consciência de que a causa da nova reviravolta não foi uma ressignificação dogmática da garantia do juiz natural. Os argumentos que prevalecem hoje são os mesmos que sucumbiram ao tempo em que foi cancelada a Súmula n.º 394. Mudaram, tão somente, os ventos políticos.
[1] BARROSO, Luis Roberto. Foro privilegiado deve acabar ou ser limitado aos chefes dos Poderes. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-mai-23/roberto-barroso-foro-privilegiado-acabar-reduzir-impunidade. Acesso: 12 mai. 2025.
[2] Súmula 394/STF: Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.[2]
[3] Isto é: apenas os crimes cometidos em razão da função podem ser julgados pelo tribunal no qual o agente possui a prerrogativa. Conferir: STF, QO na AP 937/RJ, Pleno, rel. Min. Roberto Barroso. j. 03.05.2018.
[4] RIGUEIRA NETO, Ademar. O Supremo cansou das suas próprias atribuições – e inventou a roda. Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jun-13/rigueira-neto-supremo-cansou-proprias-atribuicoes/. Acesso: 10 mai. 2025.
[5] RIGUEIRA NETO, Ademar; ROCHA, Vinícius Costa. Competência originária do Supremo Tribunal Federal em decorrência da prerrogativa de função: riscos à garantia do juiz natural em meio a uma jurisprudência lotérica. In: LEITE, Geilson Salomão et. al. (Org.). Direito penal empresarial. São Paulo: Dialética, 2024, p. 437-470.
[6] Vale destacar que o conflito entre os entendimentos proferidos pelo STF e pelo STJ acerca da aplicação do critério temático nos casos que envolvem desembargadores e ex-desembargadores é matéria a ser decidida pelo STF no Tema 1.147 de Repercussão Geral, ainda pendente de julgamento.
[7] Art. 84 do CPP. § 1o A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.
[8] É importante rememorar, sobre esse ponto, o conteúdo dos votos apresentados no julgamento da ADI 2.797-2/DF, especialmente daquele apresentado pelo ministro Eros Grau, que dirigiu fortes críticas à tese de que a Lei n.º 10.628/02 padecia de inconstitucionalidade formal.
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