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O Novo Entendimento do Supremo Tribunal Federal Sobre a Prorrogação da Competência em Hipóteses de “Foro Privilegiado”: Como Esquecer a Invenção da Roda?

Postado em 20 de maio de 2025 Por ADEMAR RIGUEIRA NETO* E VINÍCIUS COSTA ROCHA**  - * Advogado. Sócio-fundador do Rigueira, Amorim, Caribé e Leitão – Advocacia Criminal e Persecuções Governamentais. Membro da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas e do Instituto dos Advogados do Brasil. Ex-presidente da OAB/PE, ex-membro do Conselheiro Federal da OAB e ex-Desembargador Eleitoral. / ** Advogado. Sócio do Rigueira, Amorim, Caribé e Leitão – Advocacia Criminal e Persecuções Governamentais. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Cofundador da Liga em Ciências Criminais da Universidade Federal de Pernambuco.

“O foro por prerrogativa de função, apelidado de foro privilegiado, é um mal para o Supremo Tribunal Federal e para o país”.[1] Proferida ainda em 2016, essa afirmação do ministro Luis Roberto Barroso sintetiza as razões que fizeram o STF limitar as hipóteses de incidência da prerrogativa de foro em decorrência da função.

A primeira mudança emblemática ocorreu em 1999, quando o STF cancelou o enunciado da Súmula n.º 394[2] e passou a compreender que o término ou a perda do cargo faz cessar a competência do tribunal no qual o agente possuía a prerrogativa de foro. Em 2018, justamente sob a relatoria do ministro Barroso, o STF foi além e passou a declarar que o texto “infrações penais comuns”, previsto no art. 102, I, “b”, da Constituição, deveria ser lido como “infrações relacionadas ao exercício das funções”.[3]

Por trás da restrição das hipóteses de incidência da prerrogativa de foro e da vedação à prorrogação da competência (concretização de um critério temático e temporal), eram evidentes as razões políticas: não se aguentava o acúmulo de processos nos tribunais e a pressão social atrelada aos casos de grande repercussão.

Tanto à época da última reviravolta jurisprudencial[4] quanto recentemente,[5] argumentamos que nem mesmo a “interpretação teleológica” era capaz de chancelar a restrição das hipóteses de incidência da prerrogativa de foro promovida pelo STF. Em março deste ano, o tema voltou à ordem do dia. Por meio do julgamento do Habeas Corpus n.º 232.627/DF e da Questão de Ordem no Inquérito n.º 4.787, a Corte restaurou o raciocínio consagrado pela Súmula n.º 394 e passou a definir que a prerrogativa de foro em razão da função subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício. O acórdão determina que esse novo entendimento deverá ser aplicado a todos os processos em curso, ressalvada a validade dos atos praticados com base no raciocínio anterior.

A brevidade deste espaço não nos permite examinar o acerto da conclusão tomada pelo STF quanto ao mérito da questão debatida. Pretendemos apenas trazer duas ponderações sobre os efeitos promovidos pelo novo entendimento do Supremo.

A primeira decorre da ausência de enfrentamento, no novo acórdão paradigma, sobre a existência de possíveis hipóteses de exceção à regra concretizada. Para que se fique com um exemplo: a Corte Especial do STJ vem conferindo tratamento específico aos desembargadores e ex-desembargadores, declarando-se competente para julgá-los mesmo nos casos em que são acusados da prática de crimes que não guardam relação com a função, mas incompetente para julgar aqueles que se aposentam antes da conclusão da instrução. A nova interpretação dada pelo critério temporal também se aplicará a esses casos? O que o STJ dirá no exercício da sua competência constitucional originária?[6]

A segunda ponderação tem como causa a ausência de reflexão pelo STF sobre as consequências que o novo entendimento imporá em sua própria jurisprudência. Inconformado com a Lei n.º 10.628/02, editada em resposta ao cancelamento da Súmula n.º 394, o STF declarou inconstitucional dispositivo que apregoa justamente o entendimento defendido por ele hoje.[7] A coisa julgada formada no julgamento da ADI 2.797-2/DF se tornou, enfim, inconstitucional? Só o Supremo poderia interpretar a Constituição da maneira que passou a interpretar neste ano, como fez à época,[8] por que não o fez a partir de uma declaração da constitucionalidade do art. 84, § 1º, do CPP?

Questionamentos como esse impõem o aprofundamento das reflexões sobre o tema, com a consciência de que a causa da nova reviravolta não foi uma ressignificação dogmática da garantia do juiz natural. Os argumentos que prevalecem hoje são os mesmos que sucumbiram ao tempo em que foi cancelada a Súmula n.º 394. Mudaram, tão somente, os ventos políticos.


[1] BARROSO, Luis Roberto. Foro privilegiado deve acabar ou ser limitado aos chefes dos Poderes. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-mai-23/roberto-barroso-foro-privilegiado-acabar-reduzir-impunidade. Acesso: 12 mai. 2025.

[2] Súmula 394/STF: Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.[2]

[3] Isto é: apenas os crimes cometidos em razão da função podem ser julgados pelo tribunal no qual o agente possui a prerrogativa. Conferir: STF, QO na AP 937/RJ, Pleno, rel. Min. Roberto Barroso. j. 03.05.2018.

[4] RIGUEIRA NETO, Ademar. O Supremo cansou das suas próprias atribuições – e inventou a roda. Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jun-13/rigueira-neto-supremo-cansou-proprias-atribuicoes/. Acesso: 10 mai. 2025.

[5] RIGUEIRA NETO, Ademar; ROCHA, Vinícius Costa. Competência originária do Supremo Tribunal Federal em decorrência da prerrogativa de função: riscos à garantia do juiz natural em meio a uma jurisprudência lotérica. In: LEITE, Geilson Salomão et. al. (Org.). Direito penal empresarial. São Paulo: Dialética, 2024, p. 437-470.

[6] Vale destacar que o conflito entre os entendimentos proferidos pelo STF e pelo STJ acerca da aplicação do critério temático nos casos que envolvem desembargadores e ex-desembargadores é matéria a ser decidida pelo STF no Tema 1.147 de Repercussão Geral, ainda pendente de julgamento.

[7] Art. 84 do CPP. § 1o A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.

[8] É importante rememorar, sobre esse ponto, o conteúdo dos votos apresentados no julgamento da ADI 2.797-2/DF, especialmente daquele apresentado pelo ministro Eros Grau, que dirigiu fortes críticas à tese de que a Lei n.º 10.628/02 padecia de inconstitucionalidade formal.

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