Como é cediço, no âmbito do processo civil, para que se alcance a tutela jurisdicional definitiva, é necessário transitar por diversas fases procedimentais que assegurem o exercício pleno do contraditório e da ampla defesa. A produção de provas e o devido debate processual são instrumentos indispensáveis para a obtenção de uma decisão justa e fundamentada, expressão máxima da chamada exauriência de mérito. Todavia, tem-se observado na prática forense certa distorção da aplicação das tutelas de urgência de natureza antecedente, o que vem gerando uma problemática relevante na sistemática processual contemporânea.
As tutelas antecipadas antecedentes foram concebidas como instrumentos excepcionais, destinadas a proteger o jurisdicionado de riscos de dano grave ou de difícil reparação, antes mesmo do julgamento do mérito. Servem, portanto, como verdadeiro termômetro processual que permite ao Estado-juiz intervir de modo célere e equilibrado, preservando o equilíbrio entre as partes e a efetividade da prestação jurisdicional. Contudo, o uso indiscriminado desse mecanismo tem ocasionado insegurança jurídica, especialmente quando sua estabilização ocorre sem a observância plena do contraditório substancial.
Quando o magistrado defere uma tutela antecipada antecedente, essa decisão tem natureza interlocutória, podendo ser impugnada por agravo de instrumento. Nessa hipótese, a estabilização da decisão pode ocorrer em dois momentos: se o tribunal mantiver o entendimento do juízo de origem ou se a parte contrária, ciente da decisão, optar por não recorrer. Trata-se, nesse contexto, de uma forma de preclusão lógica ou fática do direito de impugnação, resultando na consolidação provisória dos efeitos da tutela, conforme a previsão do art. 304 do Código de Processo Civil.
Entretanto, o problema surge quando essa tutela, ainda que inicialmente estabilizada, é posteriormente revogada pelo órgão colegiado. Nessa situação, a parte que obteve a medida vê-se em posição de incerteza quanto à incidência dos efeitos materiais da decisão, especialmente se já houver sido iniciada a fase de liquidação ou execução provisória. O art. 302 do CPC prevê a responsabilidade da parte pelos prejuízos decorrentes da tutela revogada, mas a aplicação prática dessa regra demanda uma análise criteriosa à luz dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
É imperioso reconhecer que a revogação de uma tutela antecedente, após sua implementação prática, não pode ocorrer de forma automática ou desprovida de fundamentação adequada. A efetividade processual não se sobrepõe às garantias fundamentais do devido processo legal. Assim, antes da revogação ou modificação da decisão, deve-se oportunizar à parte beneficiária a manifestação plena, assegurando o debate dialético sobre os efeitos da medida e sobre eventuais prejuízos que a reversão possa acarretar.
Portanto, a estabilização e a revogação das tutelas antecedentes devem ser analisadas de forma harmoniosa, sob a ótica da segurança jurídica e da boa-fé processual. O art. 302 do CPC não deve ser interpretado como instrumento de punição automática, mas como expressão do dever de responsabilidade processual das partes e da prudência judicial. Em um sistema processual cooperativo, a busca pela efetividade não pode implicar a supressão do contraditório, sob pena de desnaturar a própria essência do processo justo e democrático.
Nesses últimos dias, dediquei-me ao estudo de um processo que apresentava graves patologias processuais, revelando um verdadeiro descompasso entre a teoria e a prática do processo civil contemporâneo. A demanda versava sobre uma ação de obrigação de fazer, pelo procedimento comum, proposta por uma autora em situação de vulnerabilidade, que buscava junto ao Judiciário o reconhecimento e a efetivação de seu direito fundamental à saúde. O caso, em essência, retratava o conflito entre a necessidade de tutela imediata e a observância das garantias processuais constitucionais.
O magistrado, ao analisar o pedido inicial, entendeu estarem presentes os requisitos do artigo 300 do Código de Processo Civil — probabilidade do direito e perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo — e, por essa razão, deferiu a tutela antecipada de mérito, determinando o fornecimento do serviço médico domiciliar (home care) pleiteado. A decisão buscava assegurar a preservação da vida da autora, evitando a irreversibilidade do dano que sua condição clínica impunha.
Inconformada, a parte ré interpôs agravo de instrumento, visando suspender os efeitos da decisão interlocutória. Contudo, o relator, em sede liminar, negou o pedido de efeito suspensivo, mantendo a eficácia da tutela concedida. Diante disso, a ré cumpriu a determinação judicial, implementando o serviço de home care. Infelizmente, no curso da tramitação do recurso, a autora veio a falecer, o que modificou substancialmente o panorama processual e o interesse de agir, exigindo do juízo uma atuação atenta aos limites da jurisdição.
Posteriormente, o tribunal, ao julgar o mérito do agravo, reformou a decisão de primeiro grau, revogando a tutela antecipada anteriormente deferida. Essa revogação, embora legítima sob o aspecto formal, produziu efeitos complexos, uma vez que o serviço já havia sido efetivamente prestado e os gastos correspondentes realizados. O correto, sob a ótica processual, seria discutir a responsabilidade civil pelos efeitos da tutela revogada nos próprios autos, mediante incidente próprio ou nova demanda indenizatória, jamais por cumprimento de sentença inexistente.
Ocorre que, em vez de buscar o ressarcimento de forma incidental ou em ação autônoma, a parte ré manteve-se inerte por longo período. O juízo, observando a ausência de impulso processual, extinguiu o processo sem resolução de mérito, nos termos do artigo 485, inciso III, do CPC, diante do abandono da causa pela parte autora. O feito, assim, deveria ter seguido para o arquivamento, respeitando o devido encerramento processual e a estabilidade das decisões.
Surpreendentemente, o processo, que já se encontrava arquivado, retornou à tramitação de modo absolutamente anômalo e dissociado do fluxo regular do procedimento civil. A parte ré apresentou petição intitulada “cumprimento de sentença”, requerendo o pagamento dos valores referentes à tutela revogada, sob a justificativa de aplicação direta do artigo 302 do Código de Processo Civil. Essa iniciativa, além de confusa, violou princípios estruturantes do processo, subvertendo a lógica da execução e invertendo indevidamente os polos da relação processual.
Nesse novo cenário, verificou-se uma verdadeira inversão processual: o réu passou à posição de exequente, e a autora — já falecida — tornou-se, por ficção jurídica, a executada. Tudo isso sem que houvesse uma sentença condenatória transitada em julgado ou sequer um título executivo judicial válido. Trata-se, portanto, de uma distorção grave do procedimento de cumprimento de sentença, pois, como se sabe, a execução exige título certo, líquido e exigível, requisitos absolutamente ausentes no caso.
É comum observar, infelizmente, que alguns operadores do direito confundem a estabilização da tutela antecipada com a formação de um título executivo. A tutela antecedente, ainda que estabilizada, não gera, por si só, condenação definitiva, tampouco título exequível. Sua revogação ou modificação demanda o respeito ao contraditório, sob pena de afronta direta aos princípios constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal. A interpretação simplista do artigo 302 do CPC conduz a graves violações da segurança jurídica e do sistema processual como um todo.
A execução baseada em decisão revogada, sem título judicial ou exaurimento do mérito, configura verdadeira “aberração jurídica”. Não se trata apenas de erro técnico, mas de violação de garantias constitucionais, uma vez que a ausência de contraditório efetivo impede a parte de se defender de uma cobrança ilegítima. O princípio da efetividade não pode ser invocado como justificativa para distorcer a natureza dos atos processuais nem para criar efeitos executivos de decisões provisórias.
Sob essa ótica, o artigo 302 do CPC deve ser interpretado de maneira restritiva e teleológica, pois sua finalidade não é autorizar a execução automática de valores decorrentes de tutelas revogadas, mas assegurar a responsabilização da parte que se beneficiou indevidamente de uma decisão posteriormente desconstituída, mediante ação própria e observância do devido processo legal. A sua aplicação direta em cumprimento de sentença carece de base jurídica e fere a coerência do sistema processual civil.
O juiz, como guardião da legalidade e do devido processo, deve reconhecer de ofício essas distorções, impedindo o prosseguimento de execuções baseadas em títulos inexistentes ou inválidos. A condução do processo fora dos limites legais compromete a autoridade da jurisdição e atinge a confiança social no Poder Judiciário. Não se pode admitir que o formalismo ceda espaço à improvisação, sobretudo quando estão em jogo direitos fundamentais e o equilíbrio entre as partes.
Dessa forma, o caso concreto demonstra, com clareza, a importância do tema proposto neste artigo: a estabilização ou revogação da tutela antecedente à incidência de liquidação à luz do contraditório e da ampla defesa. O episódio ilustra, de forma contundente, os riscos de uma leitura apressada do artigo 302 do CPC e a necessidade de uma atuação judicial técnica, equilibrada e constitucionalmente orientada. Afinal, a jurisdição só cumpre seu papel quando é exercida com respeito à legalidade, à coerência processual e à proteção efetiva dos direitos fundamentais.
A tutela antecedente, no ordenamento processual civil brasileiro, é a exceção da resposta do Estado-juiz. Ela surge como instrumento excepcional, destinado a assegurar a efetividade imediata do direito quando o tempo do processo ameaça torná-lo inútil. Em regra, a tutela jurisdicional deve ser prestada ao final, após o amadurecimento do contraditório e a ampla formação da convicção judicial. Contudo, há situações em que a urgência impede a espera pela sentença, e o magistrado, atento à necessidade de proteger o bem jurídico ameaçado, pode antecipar os efeitos da tutela definitiva, desde que observados os pressupostos do artigo 300 do CPC.
Quando a tutela antecipada antecedente é deferida, ela projeta efeitos provisórios, subordinados à posterior confirmação pela sentença de mérito. É um ato judicial que visa garantir a efetividade da jurisdição, mas que não se confunde com uma decisão definitiva. Somente após o devido contraditório e a completa instrução probatória é que se forma a tutela exauriente, consolidada em sentença. Assim, a estabilização da tutela, prevista no artigo 304 do CPC, não transforma a decisão liminar em título executivo judicial, mas apenas impede a rediscussão do tema se não houver recurso tempestivo, refletindo a maturação do processo.
O problema se instala quando essa tutela, posteriormente revogada, passa a ser tratada como se gerasse efeitos executivos plenos, sem a necessária sentença de mérito. O artigo 302 do CPC é expresso ao estabelecer que a parte responde pelos prejuízos que a efetivação da tutela de urgência causar, se esta vier a ser revogada, modificada ou se o autor não obtiver êxito na demanda. Ora, essa disposição não cria um título executivo automático, tampouco autoriza cumprimento de sentença sem título. Pelo contrário, ela prevê apenas a responsabilidade civil decorrente do uso indevido da medida antecipatória.
Desse modo, a tutela revogada carece de sentença, pois a sua natureza é provisória e dependente de confirmação judicial. A execução baseada em decisão liminar ou interlocutória viola o princípio da legalidade processual, uma vez que, para que exista cumprimento de sentença, é indispensável que haja sentença de mérito transitada em julgado ou título judicial com força executiva, conforme exigem os artigos 513 e 515 do CPC. A ausência desses elementos compromete a validade da execução e transforma o processo em um instrumento de arbítrio.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, incisos LIV e LV, consagra o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa como pilares da jurisdição democrática. Tais garantias não se limitam a formalidades; representam uma dimensão substancial de justiça, assegurando que nenhuma parte seja condenada ou compelida sem ter a oportunidade plena de se manifestar e produzir provas. Assim, qualquer tentativa de execução baseada em decisão precária afronta esses princípios e deturpa o sentido teleológico do processo civil, que é o de realizar justiça mediante equilíbrio procedimental.
A proteção teleológica do processo civil impõe que o sistema seja interpretado à luz de sua finalidade: a pacificação social por meio da decisão justa e devidamente fundamentada. O processo não pode ser um mecanismo de surpresa, mas um espaço de diálogo e construção gradual da verdade jurídica. A tutela antecipada, quando corretamente aplicada, não substitui a sentença, mas apenas a antecipa de modo provisório, sujeita a posterior revisão. Essa compreensão preserva a harmonia entre efetividade e segurança jurídica, evitando o uso indevido de medidas urgentes como instrumentos punitivos ou arrecadatórios.
Sob essa ótica, o artigo 302 do CPC deve ser lido como cláusula de responsabilidade e não como cláusula de execução. Ele se destina a equilibrar os efeitos de decisões provisórias, permitindo que o prejudicado pela tutela revogada busque reparação pelos danos sofridos, mas sempre por meio de ação própria ou incidente processual, em que se assegure o devido contraditório. A sua aplicação direta em sede de cumprimento de sentença, sem o devido título, representa grave deturpação do sistema de garantias processuais.
É preciso enfatizar que o contraditório, enquanto princípio constitucional, não se resume ao simples direito de falar, mas ao direito de influenciar o convencimento do julgador. O mesmo raciocínio vale para a ampla defesa, que assegura a efetiva possibilidade de resposta, produção de provas e impugnação das decisões judiciais. A execução de tutela revogada, sem essas garantias, anula o espaço de diálogo e transforma o processo em instrumento de coação, o que é incompatível com o Estado Democrático de Direito, sob flagrante ilegalidade aos arrepio da proteção do teto constitucional. E como meio de dar validade ao processo que é o mais democrático possível, a jurisdição deve observar, em toda sua estrutura, os valores constitucionais que sustentam o processo justo.
Do ponto de vista constitucional, o processo civil moderno é regido por uma teleologia cooperativa, na qual as partes e o juiz compartilham a construção da decisão justa. A revogação da tutela antecedente não deve servir como fundamento para inverter a lógica do sistema ou para criar responsabilidades automáticas. É preciso que haja decisão final, madura, fundamentada e submetida ao contraditório substancial, única forma de legitimar a imposição de obrigações e resguardar a integridade da jurisdição.
Quando o magistrado permite a execução de uma tutela revogada, sem título judicial, o que se tem é a negação da própria função jurisdicional. A autoridade do juiz não se manifesta pela força, mas pela legalidade e coerência de suas decisões. O desrespeito à estrutura procedimental transforma a jurisdição em instrumento arbitrário, minando a confiança social no sistema de justiça e ferindo os direitos fundamentais das partes.
Por isso, a estabilização da tutela, quando ocorre, deve representar o amadurecimento do processo e não o atalho da decisão. Ela é um estágio de maturação institucional e das partes, no qual a ausência de impugnação demonstra concordância e estabilidade. Já a revogação da tutela, ao contrário, exige prudência, respeito ao devido processo legal e vedação a qualquer execução sem sentença. Assim, compreende-se que o processo civil, em sua essência teleológica, existe para proteger direitos com base no equilíbrio, na legalidade e na justiça substancial.
Dessa forma, reafirma-se que a tutela antecedente é a exceção da resposta judicial, admitida apenas quando a urgência impede o amadurecimento da jurisdição. A sua revogação, conforme o artigo 302 do CPC, impõe responsabilidade, mas não execução. A proteção constitucional do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal não permite que o processo se torne instrumento de perseguição ou surpresa. O verdadeiro papel do juiz é assegurar que a efetividade caminhe lado a lado com a segurança jurídica — só assim o processo civil cumpre sua função de realizar justiça em sentido pleno.
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