Yan Lucas Ramos Brasil

“Me filma, eu tô virando star”: O cinema invisível dos algoritmos e Direito Civil de Marina Sena (parte 3)

Postado em 12 de novembro de 2025 Por Yan Lucas Ramos Brasil Graduando em Direito pela Universidade de Pernambuco. Estagiário do Bartilotti Advogados. Monitor acadêmico de direito das sucessões. Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/PE.

“Eu tô virando star do seu cinema particular.” — Marina Sena

(O problema começa quando o filme continua rodando, mesmo sem o consentimento do protagonista.)

Introdução

“Olha, eu gosto quando você me olha / Me filma, eu tô virando star / Do seu cinema particular.”
Logo nos primeiros versos de Dano Sarrada, Marina Sena traduz o desejo contemporâneo de ser vista — um prazer que nasce da própria exposição. O eu-lírico não apenas consente, mas quer ser filmado, quer ser eternizado nas lentes de seu interlocutor e no espaço virtual onde a imagem será depositada. A imagem deixa de ser risco e se converte em expressão, em performance de si, em meio de afirmação da identidade.

Mas, fora do imaginário pop, o olhar nem sempre é voluntário. O que acontece quando o “cinema particular” de Marina se transforma no “cinema invisível” dos algoritmos, que filmam, classificam e exploram sem que o sujeito saiba de sua exposição? O que resta da autonomia da vontade quando o consentimento é reduzido a um clique automático em termos e condições que (convenhamos) ninguém lê?

É nesse ponto que o Direito Civil é chamado a dialogar com o pop: a canção encena a sedução da vigilância, enquanto a dogmática civilista precisa repensar a proteção dos direitos da personalidade em um cenário em que o desejo de ser visto convive com a vulnerabilidade estrutural do usuário diante da alta capacidade informacional e tecnológica das plataformas digitais.

No terceiro capítulo da coluna O Direito Civil de Marina Sena, questiona-se a linha tênue entre consentimento e vulnerabilidade na sociedade algorítmica: será que verdadeiramente sabemos quando somos star do cinema (nem um pouco) particular dos algoritmos?

1. O prazer de ser visto: quando a exposição é escolha

O eu-lírico de Marina Sena celebra o olhar do outro: há poder e desejo em ser filmada, em ser estrela do “cinema particular” alheio. O olhar, nesse contexto, não é invasão, mas vínculo – uma forma de reconhecimento e, de certo modo, de amor. Essa dimensão performática da visibilidade traduz o que o Direito Civil chamaria de autonomia existencial: o exercício da liberdade individual para definir a própria imagem, o próprio corpo e os modos de se apresentar ao mundo. Essa autonomia, assim como boa parte do direito civil pós-moderno, possui lastro na Constituição da República, no pilar indispensável da dignidade da pessoa humana trazido no art. 1º, inc. III, que fundamenta o livre exercício da autonomia individual para o exercício e desenvolvimento da personalidade. A dignidade humana, ainda que dentro da sociedade algorítmica, preza e deve proteger a autonomia do titular.

Em matéria infraconstitucional, os direitos da personalidade estão previstos nos arts. 11 a 21 do Código Civil, e se estruturam exatamente sobre esse fundamento: a proteção da integridade moral, psíquica e física da pessoa, reconhecendo-a como titular de um núcleo inviolável de liberdade. O art. 20, por exemplo, veda o uso da imagem sem autorização, salvo por exigência da justiça ou para fins jornalísticos. Essa previsão traduz o direito de escolher o modo de aparecer – ou de não aparecer – no espaço público da internet[1].

No universo de Marina, há plena consciência dessa escolha: ela sabe que é filmada e transforma o ato em afirmação de vontade. No plano jurídico, essa seria a forma legítima de disposição do direito à imagem, baseada em vontade livre e esclarecida. Mas o que acontece quando o sujeito não sabe que está sendo visto? Quando a exposição se dá por mecanismos invisíveis de rastreamento e processamento de dados? O olhar desejado da canção cede lugar ao olhar técnico, que captura sem pedir.

2. Quando o olhar deixa de ser humano: o cinema dos algoritmos

O olhar de que fala Marina Sena é pessoal, íntimo, quase artesanal. Já o olhar dos algoritmos é impessoal, automatizado e constante. Cada movimento na rede, um clique, um tempo de rolagem, uma pausa diante de um vídeo, é convertido em dado, classificado, armazenado e monetizado. O indivíduo é filmado mesmo sem câmera: vive em permanente estado de visibilidade como no célebre romance “1984” de George Orwell. A diferença: o Grande Irmão está mais perto do que se imagina.

Nesse contexto, a privacidade adquire novo significado: não se trata apenas do direito de estar só, mas do direito de controlar as informações sobre si mesmo. Essa dimensão informacional da personalidade ainda é incipiente no Código Civil, embora se possa dela extrair fundamentos implícitos nos arts. 12 e 21, que garantem a tutela civil contra agressões à vida privada e às representações indevidas da imagem.

A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n.º 13.709/2018) amplia esse escopo, exigindo que o tratamento de dados pessoais dependa de consentimento livre, informado e inequívoco. Contudo, esse consentimento raramente é consciente. O usuário é levado a aderir a termos obscuros, em um ambiente técnico que não domina. Ele não escolhe ser filmado – é filmado por default.

Enquanto Marina deseja o olhar e o transforma em performance, o usuário comum é transformado em produto, vulnerável frente a plataformas que detêm o código, o algoritmo e, com eles, o poder de moldar suas experiências, preferências e decisões. A vulnerabilidade aqui não é apenas econômica, mas informacional e cognitiva: o usuário é incapaz de compreender os mecanismos que o observam. Sob a ótica jurídica, a relação entre usuário e plataforma digital configura inequívoca relação de consumo, nos termos do art. 2º e do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor. O usuário, destinatário final do serviço, é vulnerável não apenas na perspectiva econômico-financeira, mas técnica e informacionalmente, diante do poder concentrado das corporações que detêm os códigos e fontes que regem sua experiência.

Essa vulnerabilidade é estrutural e se manifesta na assimetria de conhecimento: o consumidor não tem acesso às condições reais de tratamento de seus dados, tampouco compreende as lógicas preditivas que moldam suas escolhas, preferências e até emoções. A aparente liberdade de consentir, clicar “aceito os termos”, é, na verdade, um simulacro de autonomia, onde o sujeito é reduzido a um conjunto de padrões estatísticos.

Enquanto Marina Sena deseja ser filmada e se reconhece como protagonista do “cinema particular”, o usuário digital é figurante de um filme que não escreveu, cujo roteiro é determinado por algoritmos invisíveis. Essa contradição evidencia uma nova forma de vulnerabilidade civil: a vulnerabilidade do olhar – ser visto sem querer, interpretado sem saber e reduzido a dados sem consentir.

O “cinema particular” da canção, no qual o eu-lírico é sujeito do olhar, converte-se, na realidade digital, em um cinema automatizado no qual o indivíduo é apenas objeto de captação.

3. A erosão do consentimento e a crise da autonomia civil

O Direito Civil nasceu sobre o mito da vontade livre. O consentimento seria o eixo legitimador dos contratos e das manifestações da personalidade. Mas o ambiente digital desmente esse paradigma. Diante de algoritmos proprietários e códigos indecifráveis, o consentimento torna-se formalidade, um simulacro de escolha.

Para que o consentimento tenha validade jurídica, não basta a assinatura ou o clique: é necessário conhecimento e compreensão. A vontade deve ser livre e esclarecida, como ensina a tradição civilista. Quando a informação é opaca e o contexto técnico incompreensível, há vício de consentimento (ainda obscuro se por erro ou por dolo, mas certamente um vício) e, portanto, ineficácia no plano negocial.

A vulnerabilidade do usuário, como já afirmado, é estrutural. As plataformas concentram não apenas poder econômico, mas também poder cognitivo, pois conhecem o funcionamento de sistemas que o usuário não tem meios de compreender. Essa assimetria rompe a equivalência que o Direito Civil pressupõe entre os sujeitos de uma relação jurídica.

Enquanto Marina Sena canta o empoderamento da visibilidade (o prazer de ser filmada por escolha), o usuário digital vive a experiência oposta: é observado sem saber, exposto sem querer e classificado sem compreender. O que no pop é erotismo, no direito é lesão.

Não se pode olvidar que a boa-fé objetiva, prevista no art. 422 do Código Civil, impõe deveres de transparência e lealdade. Esse princípio deve ser reinterpretado para impor às plataformas digitais o dever de garantir que o usuário compreenda, de modo efetivo, o tratamento de seus dados e a lógica dos algoritmos que o afetam. Do contrário, o contrato digital é apenas uma ficção que legitima a vigilância.

4. Reconfigurar a privacidade: do direito de estar só ao direito de ser autor da própria imagem

O art. 21 do Código Civil assegura que a vida privada é inviolável, cabendo ao juiz adotar medidas necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esse preceito. Mas a noção de “vida privada” que inspirou o legislador de 2002 pressupunha fronteiras nítidas entre o público e o íntimo, fronteiras que se dissolveram no espaço digital.

Hoje, o desafio civilista é ampliar a tutela dos direitos da personalidade para o que se poderia chamar de direito à autodeterminação informacional, isto é, o poder de decidir sobre o fluxo, o tratamento e o destino de dados pessoais e imagens, inclusive os derivados do comportamento online. O indivíduo deve ser autor, e não personagem, de sua própria representação.

A vulnerabilidade do usuário diante das plataformas torna urgente essa reconstrução teórica. Enquanto o eu-lírico de Dano Sarrada controla o enquadramento e performa para a câmera, o usuário é filmado de todos os ângulos, sem roteiro e sem saber que há gravação. O olhar desejado de Marina é substituído pela vigilância difusa das máquinas.

Nesse cenário, o Direito Civil deve abandonar o paradigma reativo – que apenas repara o dano – e adotar uma lógica preventiva e estrutural, impondo às plataformas deveres positivos de transparência algorítmica, de reversibilidade do consentimento e de limitação do tratamento automatizado. Trata-se de restaurar, no ambiente digital, o protagonismo da pessoa humana que os arts. 11 e seguintes do Código Civil consagram como núcleo do sistema jurídico.

Notas conclusivas

Marina Sena esclarece bem: quem canta sabe que é filmada e, mais que isso, quer sê-lo. O olhar é consciente, e a exposição, voluntária. No espaço digital, esse pacto desaparece. O olhar é permanente e impessoal, e o consentimento, um simulacro. O usuário, vulnerável diante do poder técnico e econômico das plataformas, torna-se objeto de um olhar que não compreende e de um código que não domina.

O Direito Civil precisa reagir a essa inversão. Não basta proteger a imagem contra o uso indevido, é preciso garantir a autonomia informacional e a transparência das formas de vigilância digital. A tutela da personalidade, para ser efetiva, deve incluir o direito de saber que se está sendo observado e o direito de decidir quando o olhar deve cessar.

No cinema invisível dos algoritmos, todos viramos estrelas sem saber. E talvez a advertência de Marina Sena ao Direito seja justamente essa: o verdadeiro “dano” não está no gesto, mas na câmera que liga sem que a estrela saiba, ou pior, que anuncia ter encerrado a gravação mas verdadeiramente nunca desliga.


[1] Necessário se fazer uma observação de que não se está a defender o que a doutrina especializada denomina de “direito ao esquecimento”, já debatido e exaurido na instância máxima do Supremo Tribunal Federal como incompatível com os ditames da Constituição da República. Aqui se defende a autonomia do usuário em não desejar ser exposto, ou de ao menos conhecer o algoritmo que lhe sequestra. A proposito: STF, RE 1.010.606/RJ, rel. Min. Dias Toffolli, Pleno, DJe 11/02/2021.

A Editora OAB/PE Digital não se responsabiliza pelas opiniões e informações dos artigos, que são responsabilidade dos autores.

Envie seu artigo, a fim de que seja publicado em uma das várias seções do portal após conformidade editorial.

Gostou? Compartilhe esse Conteúdo.

Fale Conosco pelo WhatsApp
Ir para o Topo do Site