“Eu tô virando star do seu cinema particular.” — Marina Sena
(O problema começa quando o filme continua rodando, mesmo sem o consentimento do protagonista.)
Introdução
“Olha, eu gosto quando você me olha / Me filma, eu tô virando star / Do seu cinema particular.”
Logo nos primeiros versos de Dano Sarrada, Marina Sena traduz o desejo contemporâneo de ser vista — um prazer que nasce da própria exposição. O eu-lírico não apenas consente, mas quer ser filmado, quer ser eternizado nas lentes de seu interlocutor e no espaço virtual onde a imagem será depositada. A imagem deixa de ser risco e se converte em expressão, em performance de si, em meio de afirmação da identidade.
Mas, fora do imaginário pop, o olhar nem sempre é voluntário. O que acontece quando o “cinema particular” de Marina se transforma no “cinema invisível” dos algoritmos, que filmam, classificam e exploram sem que o sujeito saiba de sua exposição? O que resta da autonomia da vontade quando o consentimento é reduzido a um clique automático em termos e condições que (convenhamos) ninguém lê?
É nesse ponto que o Direito Civil é chamado a dialogar com o pop: a canção encena a sedução da vigilância, enquanto a dogmática civilista precisa repensar a proteção dos direitos da personalidade em um cenário em que o desejo de ser visto convive com a vulnerabilidade estrutural do usuário diante da alta capacidade informacional e tecnológica das plataformas digitais.
No terceiro capítulo da coluna O Direito Civil de Marina Sena, questiona-se a linha tênue entre consentimento e vulnerabilidade na sociedade algorítmica: será que verdadeiramente sabemos quando somos star do cinema (nem um pouco) particular dos algoritmos?
1. O prazer de ser visto: quando a exposição é escolha
O eu-lírico de Marina Sena celebra o olhar do outro: há poder e desejo em ser filmada, em ser estrela do “cinema particular” alheio. O olhar, nesse contexto, não é invasão, mas vínculo – uma forma de reconhecimento e, de certo modo, de amor. Essa dimensão performática da visibilidade traduz o que o Direito Civil chamaria de autonomia existencial: o exercício da liberdade individual para definir a própria imagem, o próprio corpo e os modos de se apresentar ao mundo. Essa autonomia, assim como boa parte do direito civil pós-moderno, possui lastro na Constituição da República, no pilar indispensável da dignidade da pessoa humana trazido no art. 1º, inc. III, que fundamenta o livre exercício da autonomia individual para o exercício e desenvolvimento da personalidade. A dignidade humana, ainda que dentro da sociedade algorítmica, preza e deve proteger a autonomia do titular.
Em matéria infraconstitucional, os direitos da personalidade estão previstos nos arts. 11 a 21 do Código Civil, e se estruturam exatamente sobre esse fundamento: a proteção da integridade moral, psíquica e física da pessoa, reconhecendo-a como titular de um núcleo inviolável de liberdade. O art. 20, por exemplo, veda o uso da imagem sem autorização, salvo por exigência da justiça ou para fins jornalísticos. Essa previsão traduz o direito de escolher o modo de aparecer – ou de não aparecer – no espaço público da internet[1].
No universo de Marina, há plena consciência dessa escolha: ela sabe que é filmada e transforma o ato em afirmação de vontade. No plano jurídico, essa seria a forma legítima de disposição do direito à imagem, baseada em vontade livre e esclarecida. Mas o que acontece quando o sujeito não sabe que está sendo visto? Quando a exposição se dá por mecanismos invisíveis de rastreamento e processamento de dados? O olhar desejado da canção cede lugar ao olhar técnico, que captura sem pedir.
2. Quando o olhar deixa de ser humano: o cinema dos algoritmos
O olhar de que fala Marina Sena é pessoal, íntimo, quase artesanal. Já o olhar dos algoritmos é impessoal, automatizado e constante. Cada movimento na rede, um clique, um tempo de rolagem, uma pausa diante de um vídeo, é convertido em dado, classificado, armazenado e monetizado. O indivíduo é filmado mesmo sem câmera: vive em permanente estado de visibilidade como no célebre romance “1984” de George Orwell. A diferença: o Grande Irmão está mais perto do que se imagina.
Nesse contexto, a privacidade adquire novo significado: não se trata apenas do direito de estar só, mas do direito de controlar as informações sobre si mesmo. Essa dimensão informacional da personalidade ainda é incipiente no Código Civil, embora se possa dela extrair fundamentos implícitos nos arts. 12 e 21, que garantem a tutela civil contra agressões à vida privada e às representações indevidas da imagem.
A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n.º 13.709/2018) amplia esse escopo, exigindo que o tratamento de dados pessoais dependa de consentimento livre, informado e inequívoco. Contudo, esse consentimento raramente é consciente. O usuário é levado a aderir a termos obscuros, em um ambiente técnico que não domina. Ele não escolhe ser filmado – é filmado por default.
Enquanto Marina deseja o olhar e o transforma em performance, o usuário comum é transformado em produto, vulnerável frente a plataformas que detêm o código, o algoritmo e, com eles, o poder de moldar suas experiências, preferências e decisões. A vulnerabilidade aqui não é apenas econômica, mas informacional e cognitiva: o usuário é incapaz de compreender os mecanismos que o observam. Sob a ótica jurídica, a relação entre usuário e plataforma digital configura inequívoca relação de consumo, nos termos do art. 2º e do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor. O usuário, destinatário final do serviço, é vulnerável não apenas na perspectiva econômico-financeira, mas técnica e informacionalmente, diante do poder concentrado das corporações que detêm os códigos e fontes que regem sua experiência.
Essa vulnerabilidade é estrutural e se manifesta na assimetria de conhecimento: o consumidor não tem acesso às condições reais de tratamento de seus dados, tampouco compreende as lógicas preditivas que moldam suas escolhas, preferências e até emoções. A aparente liberdade de consentir, clicar “aceito os termos”, é, na verdade, um simulacro de autonomia, onde o sujeito é reduzido a um conjunto de padrões estatísticos.
Enquanto Marina Sena deseja ser filmada e se reconhece como protagonista do “cinema particular”, o usuário digital é figurante de um filme que não escreveu, cujo roteiro é determinado por algoritmos invisíveis. Essa contradição evidencia uma nova forma de vulnerabilidade civil: a vulnerabilidade do olhar – ser visto sem querer, interpretado sem saber e reduzido a dados sem consentir.
O “cinema particular” da canção, no qual o eu-lírico é sujeito do olhar, converte-se, na realidade digital, em um cinema automatizado no qual o indivíduo é apenas objeto de captação.
3. A erosão do consentimento e a crise da autonomia civil
O Direito Civil nasceu sobre o mito da vontade livre. O consentimento seria o eixo legitimador dos contratos e das manifestações da personalidade. Mas o ambiente digital desmente esse paradigma. Diante de algoritmos proprietários e códigos indecifráveis, o consentimento torna-se formalidade, um simulacro de escolha.
Para que o consentimento tenha validade jurídica, não basta a assinatura ou o clique: é necessário conhecimento e compreensão. A vontade deve ser livre e esclarecida, como ensina a tradição civilista. Quando a informação é opaca e o contexto técnico incompreensível, há vício de consentimento (ainda obscuro se por erro ou por dolo, mas certamente um vício) e, portanto, ineficácia no plano negocial.
A vulnerabilidade do usuário, como já afirmado, é estrutural. As plataformas concentram não apenas poder econômico, mas também poder cognitivo, pois conhecem o funcionamento de sistemas que o usuário não tem meios de compreender. Essa assimetria rompe a equivalência que o Direito Civil pressupõe entre os sujeitos de uma relação jurídica.
Enquanto Marina Sena canta o empoderamento da visibilidade (o prazer de ser filmada por escolha), o usuário digital vive a experiência oposta: é observado sem saber, exposto sem querer e classificado sem compreender. O que no pop é erotismo, no direito é lesão.
Não se pode olvidar que a boa-fé objetiva, prevista no art. 422 do Código Civil, impõe deveres de transparência e lealdade. Esse princípio deve ser reinterpretado para impor às plataformas digitais o dever de garantir que o usuário compreenda, de modo efetivo, o tratamento de seus dados e a lógica dos algoritmos que o afetam. Do contrário, o contrato digital é apenas uma ficção que legitima a vigilância.
4. Reconfigurar a privacidade: do direito de estar só ao direito de ser autor da própria imagem
O art. 21 do Código Civil assegura que a vida privada é inviolável, cabendo ao juiz adotar medidas necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esse preceito. Mas a noção de “vida privada” que inspirou o legislador de 2002 pressupunha fronteiras nítidas entre o público e o íntimo, fronteiras que se dissolveram no espaço digital.
Hoje, o desafio civilista é ampliar a tutela dos direitos da personalidade para o que se poderia chamar de direito à autodeterminação informacional, isto é, o poder de decidir sobre o fluxo, o tratamento e o destino de dados pessoais e imagens, inclusive os derivados do comportamento online. O indivíduo deve ser autor, e não personagem, de sua própria representação.
A vulnerabilidade do usuário diante das plataformas torna urgente essa reconstrução teórica. Enquanto o eu-lírico de Dano Sarrada controla o enquadramento e performa para a câmera, o usuário é filmado de todos os ângulos, sem roteiro e sem saber que há gravação. O olhar desejado de Marina é substituído pela vigilância difusa das máquinas.
Nesse cenário, o Direito Civil deve abandonar o paradigma reativo – que apenas repara o dano – e adotar uma lógica preventiva e estrutural, impondo às plataformas deveres positivos de transparência algorítmica, de reversibilidade do consentimento e de limitação do tratamento automatizado. Trata-se de restaurar, no ambiente digital, o protagonismo da pessoa humana que os arts. 11 e seguintes do Código Civil consagram como núcleo do sistema jurídico.
Notas conclusivas
Marina Sena esclarece bem: quem canta sabe que é filmada e, mais que isso, quer sê-lo. O olhar é consciente, e a exposição, voluntária. No espaço digital, esse pacto desaparece. O olhar é permanente e impessoal, e o consentimento, um simulacro. O usuário, vulnerável diante do poder técnico e econômico das plataformas, torna-se objeto de um olhar que não compreende e de um código que não domina.
O Direito Civil precisa reagir a essa inversão. Não basta proteger a imagem contra o uso indevido, é preciso garantir a autonomia informacional e a transparência das formas de vigilância digital. A tutela da personalidade, para ser efetiva, deve incluir o direito de saber que se está sendo observado e o direito de decidir quando o olhar deve cessar.
No cinema invisível dos algoritmos, todos viramos estrelas sem saber. E talvez a advertência de Marina Sena ao Direito seja justamente essa: o verdadeiro “dano” não está no gesto, mas na câmera que liga sem que a estrela saiba, ou pior, que anuncia ter encerrado a gravação mas verdadeiramente nunca desliga.
[1] Necessário se fazer uma observação de que não se está a defender o que a doutrina especializada denomina de “direito ao esquecimento”, já debatido e exaurido na instância máxima do Supremo Tribunal Federal como incompatível com os ditames da Constituição da República. Aqui se defende a autonomia do usuário em não desejar ser exposto, ou de ao menos conhecer o algoritmo que lhe sequestra. A proposito: STF, RE 1.010.606/RJ, rel. Min. Dias Toffolli, Pleno, DJe 11/02/2021.
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