Agosto está chegando ao fim e a cor lilás ganhou destaque em campanhas, prédios públicos e redes sociais. O Agosto Lilás não é apenas uma data comemorativa, mas um chamado urgente à conscientização pelo fim da violência contra a mulher. Instituído em referência à sanção da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), em 7 de agosto de 2006, este mês nos convoca a refletir sobre uma realidade brutal, persistente e que demanda ações muito mais profundas do que discursos sazonais. Para transformar o cenário de medo e agressão em um futuro de respeito e segurança, é necessário analisar os dados que expõem a ferida aberta em nossa sociedade e, a partir deles, construir um plano de ação multifacetado, que invista na educação de meninos, na reeducação de homens, no endurecimento das leis, na capacitação das forças de segurança e no fortalecimento de nossas instituições, bem como desenvolvimento de uma advocacia comprometida em ser a ponte para a Justiça.
Falar sobre a importância do Agosto Lilás exige, antes de tudo, encarar a dimensão da tragédia, porque infelizmente os dados são assustadores. Segundo o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024), divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o Brasil registrou 1.492 casos de feminicídio em 2024, um aumento de 0,7% em relação ao ano anterior e 19%, no caso da tentativa de feminicídio. Isso significa que, em média, quatro mulheres foram mortas por dia, simplesmente por serem mulheres. Também chama a atenção o fato de que a grande maioria desses crimes (cerca de 64,3%) ocorreu dentro de casa, e o assassino é, na esmagadora maioria das vezes (97%), o parceiro ou ex-parceiro da vítima. A violência que culmina na morte é apenas o pico de um iceberg de sofrimento. A pesquisa também revela que ao menos 10 mulheres foram vítimas de perseguição por hora no Brasil em 2024, além de um aumento de 6,3% na taxa do crime de violência psicológica, com mais de 50 mil registros policiais em 2024. De modo geral, a cada minuto ao menos duas pessoas acionam a PM, através do 190, para notificar casos de violência doméstica: foram mais de 1 milhão de chamadas de mulheres brasileiras que sofreram algum tipo de violência ou agressão em 2024. Além disso, o país bateu um recorde histórico de estupros, com 87.545 casos registrados, significando que uma mulher foi estuprada a cada seis minutos no Brasil. Dessas ocorrências, 76,8% das vítimas eram vulneráveis, ou seja, menores de 14 anos. Os dados do Ligue 180, principal canal de denúncias, corroboram esse cenário: em 2024, foram mais de 132.084 mil denúncias de violações contra mulheres, com a violência doméstica e familiar liderando as queixas, um aumento de 15,2% em relação a 2023. A central também registrou, em números recentes, 86.025 denúncias de violência contra mulheres de janeiro a 31 de julho de 2025. Esses números não são parte de estatísticas; são vidas interrompidas, futuros destruídos e famílias destroçadas. Eles demonstram que a violência de gênero não é um problema de nicho, mas uma epidemia estrutural que corrói os alicerces da nossa sociedade. Mas por trás de cada agressão física e cada feminicídio, existe um terreno de abusos que não deixam marcas visíveis.
Antes da agressão que deixa hematomas, há uma violência silenciosa, perversa e cotidiana. Ela é a palavra que humilha e desqualifica, disfarçada de brincadeira. É o controle financeiro, mascarado de cuidado com o patrimônio da família. É o isolamento de amigas e parentes, sob o pretexto de que ciúme é prova de amor. É a chantagem emocional que mina a autoestima, até que a mulher duvide da sua própria sanidade, da sua própria capacidade. Essa violência silenciosa é a base do iceberg. É o que adoece a alma, paralisa a vontade de reagir e prepara o terreno para a violência física que, muitas vezes, é o trágico capítulo final. E é aqui que entra um papel fundamental da sociedade, especialmente dos operadores e operadoras do Direito. A Lei Maria da Penha deu as ferramentas, mas as leis não se aplicam sozinhas. Elas precisam de vozes, de olhares atentos para enxergar além do óbvio, precisam de mãos estendidas para ajudar a quebrar o ciclo do silêncio. E é preciso dar nome a essas violências: psicológica, moral, patrimonial, sexual, bem como desvendar suas táticas, seus disfarces. Mais do que isso, é preciso compartilhar conhecimento, que é a primeira ferramenta de libertação. A conscientização sobre essas agressões sutis é o que permite que a vítima se reconheça como tal e que a rede de apoio, seja através dos amigos, dos familiares ou do próprio Estado, possa intervir antes que seja tarde demais.
A raiz da violência de gênero está fincada em uma cultura machista e patriarcal que ensina meninos a suprimir emoções, a enxergar a mulher como objeto de posse e a validar sua masculinidade através da força e do controle, por isso a mudança mais duradoura e eficaz começa na base. É fundamental investir massivamente em programas de educação para a infância e a adolescência que abordem, de forma transversal e obrigatória, temas como igualdade de gênero, masculinidades saudáveis, consentimento e inteligência emocional. E isso não se trata de ideologia de gênero, um termo pejorativo usado para descredibilizar o debate, mas de educação para os direitos humanos. Meninos precisam aprender desde cedo que chorar não os torna menos homens, que tarefas domésticas são responsabilidade de todos e que o corpo da mulher não é um território a ser conquistado. Precisam entender que “não” significa “não”, em qualquer circunstância. Escolas, famílias e a mídia têm um papel crucial em desconstruir estereótipos tóxicos e apresentar novos referenciais de masculinidade, baseados no respeito, na empatia e na parceria. Ao educarmos os meninos de hoje, estamos quebrando o ciclo de violência para as gerações de amanhã.
Enquanto educamos o futuro, não podemos nos esquecer dos homens do presente, muitos dos quais foram criados sob a égide do machismo estrutural. Um exemplo disso foi a recentíssima exclusão de um grupo italiano no Facebook em que homens compartilhavam imagens íntimas de mulheres, sem o consentimento delas, com milhares de pessoas online. O grupo “Mia Moglie”, com tradução que significa “minha esposa”, tinha cerca de 32 mil membros antes de ser fechado nesta semana. Capturas de tela feitas antes da remoção do grupo no Facebook mostravam fotos de mulheres em diferentes estados de nudez, às vezes dormindo ou em momentos íntimos. Além disso, havia inúmeros comentários sexualmente explícitos de homens, onde alguns diziam que queriam “estuprar” a mulher, enquanto outros elogiavam o caráter secreto de algumas das fotografias. E o mais impressionante nisso tudo é que o grupo não era privado, era um grupo aberto, público, onde todos esses homens escreviam despreocupadamente, sem esconder seus nomes e rostos. A META, responsável pelo Facebook, só desativou o grupo mediante massiva repercussão nacional e internacional negativa, ou seja, as denúncias internas que a plataforma recebia contra esse grupo eram completamente ignoradas. Então além da discussão a respeito do combate a masculinidade tóxica, esse caso traz à tona o debate sobre como a responsabilização dos conteúdos difundidos pelos usuários dessas plataformas deve ser cobrada e como e todos nós da sociedade civil e política devemos nos posicionar firmemente a favor de uma regulação dessas empresas. É preciso também fortalecer e ampliar campanhas de conscientização que não falem apenas para as mulheres, mas que interpelem diretamente os homens. Essas campanhas devem ir além do “não bata em mulher”. Elas precisam expor as microagressões, o machismo recreativo das piadas, a cultura do assédio velado e a cumplicidade do silêncio nas rodas de amigos. É necessário promover espaços de diálogo para homens, à título de exemplo, como os grupos reflexivos previstos na Lei Maria da Penha para agressores desde 2020, mas de forma preventiva. Debater o impacto da masculinidade tóxica na própria vida dos homens (como as altas taxas de suicídio, o abuso de álcool e a dificuldade em procurar ajuda médica), pode ser uma porta de entrada para uma reflexão mais ampla sobre gênero. Mudar a mentalidade de um homem adulto é um desafio, mas é um desafio que a sociedade precisa encarar com seriedade, usando linguagem direta, dados impactantes e figuras de referência que possam influenciar positivamente outros homens a questionarem seus próprios comportamentos.
A percepção de impunidade é um dos maiores combustíveis para a perpetuação da violência. Quando um agressor vê que as consequências de seus atos são brandas ou inexistentes, ele se sente encorajado a continuar. Embora a Lei Maria da Penha seja um marco legislativo, sua aplicação ainda enfrenta obstáculos. É preciso endurecer as sanções para quem descumpre as medidas protetivas de urgência, um dos crimes mais comuns e que frequentemente precede o feminicídio. Foram 101.656 registros de descumprimento de Medida Protetiva de Urgência em 2024, um crescimento de 10,8% da taxa em relação a 2023, sendo 52 vítimas de feminicídio com Medida Protetiva de Urgência ativa no momento do óbito. Avançar na legislação para tipificar crimes como a violência psicológica de forma mais clara e com punições severas, e garantir que a progressão de regime para condenados por crimes de violência doméstica seja mais rigorosa, são passos cruciais. A lei precisa enviar uma mensagem inequívoca à sociedade: a violência contra a mulher não será tolerada, e quem a pratica enfrentará consequências reais, rápidas e severas. A certeza da punição é um dos pilares fundamentais da prevenção criminal.
A porta de entrada do sistema de proteção é, muitas vezes, uma delegacia de polícia. A forma como a vítima é recebida nesse primeiro contato pode determinar se ela levará a denúncia adiante ou se silenciará para sempre. Relatos de tratamento hostil, de julgamento moral como: “o que você fez para provocar?” ou de minimização da violência como “briga de marido e mulher não se mete a colher“, ainda são, infelizmente, comuns. É indispensável um investimento contínuo e profundo na capacitação de todos os agentes de segurança pública, como os policiais militares, civis, guardas municipais e outros. O treinamento deve focar em um atendimento humanizado, empático, sem revitimização e com perspectiva de gênero. Os agentes precisam entender o ciclo da violência, as razões que levam uma mulher a demorar para denunciar e os sinais de risco iminente de feminicídio. Nesse contexto, é vital também desenvolver ferramentas e protocolos para a identificação de falsas denúncias. Embora estatisticamente irrisórias, essas ocorrências são instrumentalizadas por pessoas que querem usar a lei em benefício próprio e acabam por descredibilizar a luta e geram desconfiança sobre a palavra das vítimas. Um sistema de apuração sério e técnico, que saiba diferenciar uma denúncia infundada de um relato verdadeiro, protege as vítimas reais e fortalece a legitimidade da pauta, garantindo que os recursos do Estado sejam focados em quem realmente precisa de proteção.
De nada adianta uma mulher criar coragem para denunciar se o sistema de justiça falhar em protegê-la. O fortalecimento das instituições é o elo final e decisivo dessa corrente. Isso significa expandir o número de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), garantindo seu funcionamento 24 horas por dia, 7 dias por semana; criar mais Varas de Violência Doméstica e Familiar; e ampliar a rede de apoio psicossocial, com abrigos seguros e programas de autonomia econômica para as sobreviventes. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já implementou o Formulário Nacional de Avaliação de Risco, uma ferramenta essencial para que juízes possam tomar decisões mais assertivas sobre medidas protetivas e prisões preventivas. A ampla adoção e o aprimoramento de tecnologias como essa são fundamentais. Quando a sociedade percebe que as instituições funcionam, que a denúncia gera proteção efetiva e que o agressor é responsabilizado, a confiança no sistema é restaurada. E essa confiança é o que encoraja outras mulheres a quebrarem o silêncio, salvando suas próprias vidas.
Por tudo isso, o Agosto Lilás deve ser muito mais que um evento no calendário, mas sim um mês de ação catalisada por dados. Os números nos gritam que a violência contra a mulher é a mais comum das violações de direitos humanos no Brasil, atingindo todas as classes sociais, raças e regiões. Ignorar esse chamado é ser cúmplice. A solução não é única nem simples, mas uma teia complexa de ações que se inicia na educação dos meninos e culmina em um sistema de justiça forte e confiável. Somente com um compromisso coletivo e inabalável com todas essas frentes poderemos, um dia, celebrar um agosto em que a cor lilás simbolize não a luta contra a dor, mas a vitória definitiva do respeito e da vida. E nós enquanto profissionais do Direito, temos responsabilidade multiplicada: a responsabilidade de sermos vigias e nos mantermos atentos. Seja na roda de amigos, quando uma piada machista tentar se passar por humor, ou no ambiente de trabalho, quando uma colega for sutilmente desqualificada, e não menos frequente na nossa própria família, quando o controle receber o nome de “cuidado”, que não nos calemos mais. O silêncio é cúmplice da violência invisível.
Também é nosso dever sermos portos seguros. Se uma mulher lhes procurar, ofereçam escuta sem julgamento. Acreditem nela. Muitas vezes, o simples ato de ser ouvida com empatia é o primeiro passo para que ela recupere a força de que precisa para romper o ciclo da violência. Digam a ela: “Você não está sozinha. A culpa não é sua.” E por fim, que sejamos pontes para a justiça. Nós, da advocacia, temos o dever de transformar a letra da Lei Maria da Penha em proteção real. Orientem, informem sobre a rede de apoio, sobre as delegacias, os centros de referência, e sobre o papel fundamental da OAB e da Comissão da Mulher Advogada como guardiãs dos direitos das mulheres. Que esta reflexão nos mova para além da informação, rumo à transformação; e que a semente da coragem aqui semeada floresça em ações concretas no nosso dia a dia. A luta é diária e é de todos nós. Não vamos esperar o próximo Agosto Lilás para agir de outra forma. Nossa luta começa agora, no momento em que também decidimos não mais nos calar.
AGÊNCIA BRASIL. Ligue 180 recebe 86 mil denúncias de violência contra mulher até julho. Brasília, DF: EBC, 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitoshumanos/noticia/2025–08/ligue–180–recebe–86–mil–denuncias–de–violencia–contramulher–ate–julho. Acesso em: 23 Ago. 2025.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2025. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario–brasileiro–de–seguranca–publica/. Acesso em: 23 Ago. 2025.
EXPRESSO. Grupo com 30 mil membros partilhava imagens íntimas das mulheres sem consentimento foi apagado pelo Facebook. Lisboa: Impresa, 2025. Disponível em: https://expresso.pt/internacional/europa/italia/2025–08–22–grupo–com–30–mil–membrospartilhava–imagens–intimas–das–mulheres–sem–consentimento–foi–apagado–pelofacebook–d74c7297. Acesso em: 23 Ago. 2025.
G1 PR. Brasil tem pelo menos 159 grupos reflexivos para homens autores de violência doméstica com participação do MP; veja lista. Curitiba: Globo, 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2023/07/04/brasil–tem–pelo–menos–159–gruposreflexivos–para–homens–autores–de–violencia–domestica–com–participacao–do–mp–vejalista.ghtml. Acesso em: 23 Ago. 2025.
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