A chegada do europeu no país representou um verdadeiro extermínio físico e identitário dos povos originários brasileiros. No início da formação do sistema-mundo esses indivíduos eram tidos como mão-de-obra não paga, corpos racializados de forma estratégica pela Metrópole, integrados não como componentes sociais, mas como entes passíveis de apropriação pelo português, que poderiam ser utilizados até sua morte, afinal acreditava-se não se tratar de indivíduos detentores de alma. Aqui se iniciou seu extermínio físico.
Com a Bula Veritas Ipsa de Paulo III reconheceu-se em 1537 a humanidade dos indígenas, que deveriam ser convertidos e tornados semelhantes ao europeu, em uma clara posição etnocêntrica europeia[1]. No entanto, apesar desse reconhecimento papal como seres humanos, criou-se a ideia de que não possuiriam uma cultura, saberes e modos de vida válidos, e que, portanto, deveriam ser modificados, adequando o “selvagem” para a civilização.
Surge assim a necessidade de assimilação do indígena à sociedade ocidentalizada graças a um projeto político que lhes negava o direito à diferença, pois baseado em um ideal de homogeneização e europeização desses povos que deveriam ser integrados à civilização e retirados de seu estado de natureza. Inicia-se aqui um verdadeiro etnocídio.
A tentativa de supressão de sua identidade teve base em uma lógica racializada de superioridade do padrão branco ocidental português. Na ideia de primitividade dos povos indígenas era necessário assimilá-los e “torná-los” cidadãos, o que exigia sua total integração à sociedade brasileira e o consequente abandono de seus saberes, costumes, línguas, enfim, da sua identidade, retirando-lhes, por fim, a sua “indianidade”[2] na busca de uma pretensa “igualdade” de direitos e condições. Para Antônio Dantas:
em contextos histórico e político tão adversos aos povos indígenas, a igualdade de direitos na perspectiva assimilacionistas significa morte, porque representa um diluir-se no conjunto social homogêneo da sociedade nacional. Morte, quando não física, cultural[3].
Assim, a assimilação e o extermínio físico e cultural andam conjuntamente, sendo conceitos indissociáveis.
Esse discurso eurocentrado acabou se enraizando nas instituições estatais em toda a América Latina, diferenciado indivíduos, povos e culturas em uma estruturação hierarquizada e de colonialidade do ser, do poder e do saber. O Brasil colônia acabou, a dominação colonizadora não, perpetuando um projeto de uniformização da sociedade brasileira e integração indígena à cultura branca ocidental. Assim, não se pode entender o direito sem entender essa estruturação da colonialidade.
A herança da colonialidade no país deixou marcas profundas, principalmente no que condiz à proteção dos direitos desses povos, permanecendo até hoje como desafios a serem enfrentados. A base colonial não acabou, ela apenas mudou de roupagem, garantindo a manutenção do poder de classes dominantes.
Esta política acabou por legitimar a arbitrariedade e graves violações a direitos humanos, reduzindo-os em espaço e representação. Adotava-se uma política etnocêntrica e integracionista, negando-lhes o direito à multiculturalidade, devendo ser integrados e suas diferenças étnicas apagadas, pois inferiores à cultura branca ocidental, em um claro viés neocolonialista. Implementou-se um verdadeiro modelo de perseguição política, voltada a extinção destas coletividades e suas culturas[4].
A exemplo disso, a primeira Constituição brasileira, de 1824, não reservou uma proteção específica às culturas e tradições desses povos, pelo contrário, adotou-se um projeto uniformizador, impondo uma padronização cultural fruto de uma atuação estatal violenta de opressão e eliminação de seu espaço e diversidade étnica[5].
A constituinte de 1891, primeira no período republicano, não faz menção aos povos indígenas, não lhes sendo reservado nenhum direito diferenciado. Já as demais constituições brasileiras trouxeram, em maior ou menor medida, proteção a esses povos. Inicialmente reconhecia-se tão somente direitos fundiários, tendo sido o multiculturalismo garantido apenas na Constituição Federal de 1988.
A Convenção 107 da OIT, tratativa internacional vigente nos anos 50 concernente à proteção e integração dos povos indígenas, a qual o Brasil era signatário, aludia que estes deveriam ser transformados em trabalhadores e sua integração progressiva na vida nacional. Trazia a previsão de possibilidade de flexibilização dos direitos relacionados à terra, desde que em “conformidade com a legislação nacional, por motivos que visem à segurança nacional, no interesse do desenvolvimento econômico do país ou no interesse da saúde de tais populações”[6], orientado em uma política integracionista e desenvolvimentista.
Foi com base nessa Convenção que a Lei 6.001/73 – Estatuto do índio, foi editada. Legislação da década de 70 e que ainda está em vigor, é considerada uma lei contraditória, uma vez que apesar de ter avançado por um lado na proteção de seus direitos, por outro possui um perfil paternalista que manteve um sistema de tutela desses povos preceituado no Código Civil de 1916 e que lhes nega a capacidade de exercício ao enquadrá-los como civilmente incapazes e dividi-los em isolados, em vias de integração e integrados.
Efeito de um violento processo de racionalização/hierarquização dos povos originários e visando a expropriação fundiária, e amparados na legislação do período, pode-se citar as massivas extinções de aldeamentos indígenas no século XIX, alegando-se a incorporação destes povos à sociedade brasileira e que, por isso, já não poderiam mais ser considerados como tal, negando-se sua condição de sujeito de direito às terras que tradicionalmente ocupavam, pois “domesticados, os índios deixam de ser índios, sendo, portanto, destituídos dos direitos de indígenas”[7]. Apaga-se a identidade indígena, criando-se a figura do pardo para que, com isso, seus direitos sejam suprimidos e a real motivação que a lastreia, a apropriação de suas terras, seja obtida.
O Serviço de Proteção ao índio – SPI, órgão de assistência a todos esses povos no país, criado em 1910 e que funcionou por 57 anos, apenas demarcou 54 áreas indígenas que, em grande parte, eram em pequeno tamanho pois o objetivo do processo demarcatório visava tão somente assegurar-lhes um espaço de produção e subsistência, mais do que efetivar um real reconhecimento dos seus direitos[8].
Tradução da postura governamental de colonialidade, grandes estradas e hidrelétricas foram construídas pelo Estado durante as décadas de 60 e 70, dentre elas a Transamazônica, com a expulsão de diversas etnias de seu território, inclusive algumas delas consideradas isoladas, tudo isso com a anuência dos órgãos de proteção indígena.
Á época o governo alegava que a não flexibilização dos direitos referentes aos territórios indígenas constituía-se óbices ao desenvolvimento do país, devendo ser relativizados sempre que opostos ao projeto nacional. Assim, a política desenvolvimentista configurou-se “uma das principais razões para a contínua e inexorável expropriação de terras indígenas”[9].
Todas essas violações se basearam numa ideia de assimilação desses povos à sociedade brasileira, em um discurso colonial, racial, excludente e subjugador, desconstruindo memórias, saberes e a própria identidade indígena perpetuando um mito de superioridade europeia.
Com um viés mais inclusivo e pluralista, a Constituição Federal de 1988 reconheceu a esses povos sua organização, costumes e crenças, sendo a mais inovadora constituinte no país no que se refere a proteção indígena. Em seu texto visa resguardar e fomentar o multiculturalismo no Brasil, protegendo suas manifestações culturais e reafirmando o direito às terras que tradicionalmente ocupam, firmando, assim, uma nova relação entre o Estado e os povos indígenas.
Nesta mesma esteira, no final da década de 80 foi ratificada pelo Brasil a Convenção 169 da OIT que tentou superar as práticas discriminatórias que afetavam estes povos e garantir-lhes respeito a sua cultura e diversidade, garantindo inúmeros direitos, inclusive à diferença. Com uma parte exclusivamente dedicada a proteção de direitos relativos à terra que tradicionalmente ocupam, trouxe uma perspectiva coletivista da propriedade e preceituou a necessidade de consulta e participação indígena no uso, gestão e conservação de seus territórios.
No entanto, é de se dizer que apesar de uma proteção normativa direcionada a esses povos, a política integracionista nacional aniquilou seus direitos e fundamentou sua subjugação e negação de sua identidade para “torná-los” brasileiros, violações que reverberam atualmente e que perpetuam padrões de assimilação, apesar de toda evolução legislativa sobre o tema.
Esse assimiliacionismo tem razões e funções claras no cenário político atual, reverbera um efeito do contexto econômico capitalista que avança sobre fronteiras de produção e despreza os povos e populações, reduzindo-os em espaço e representação. Tal violência não pode ser banalizada.
Com vistas no fato de que o poder e não o direito é quem determina as relações em um mundo capitalista, começam a surgir fortes reivindicações sociais por parte desses povos, e que vão além do problema normativo que envolve a sua proteção, indagando sobre a própria legitimidade democrática do ordenamento jurídico brasileiro, colocando no centro do problema o poder constituinte e os poderes constituídos como responsáveis por expressar quais são as necessidades e direitos desses povos.
Dessa forma, o pensamento decolonial como corrente de estudos críticos que desloca o conceito hegemônico da Modernidade por meio de uma crítica do eurocentrismo se faz essencial na análise do arcabouço jurídico voltado aos povos originários, na promoção de um processo de ruptura da colonialidade racializada, assimétrica e desigual no país, tecendo, para além de um direito crítico uma verdadeira crítica ao direito.
[1] CUNHA, Manuela Carneiro. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. p. 130.
[2] CLASTRES, Pierre. Do etnocídio. In: Arqueologia da violência. São Paulo, Cosac Naify, 2004. p. 84
[3] DANTAS, Fernando Antônio de Carvalho. Descolonialidade e direitos humanos dos povos indígenas. Revista Educação e (Des)Colonialidades dos Saberes, Práticas e Poderes. v. 23, n. 53/1. Cuiabá, 2014. p.354.
[4] VERAS, Nathália Santos. O 6º princípio de Chicago na ditadura militar brasileira: o caso das violações dos direitos dos povos indígenas. In: BRASIL. Ministério Público Federal. Justiça de transição, direito à memória e à verdade: boas práticas. Brasília: MPF, 2018. p. 137.
[5] PARAISO, Maria Hilda B. Construindo o estado da exclusão: os índios brasileiros e a constituição de 1824. Revista CLIO – Revista de Pesquisa Histórica. Recife. Volume 28.2. p. 2.
[6] OIT. Convenção n. 107 sobre populações aborígenes e tribais. Disponível em: <https://bit.ly/4k0nZLu> Acesso em: 20 de ago. de 2021.
[7] TEIXEIRA, Luana. Integrados à massa da população: “índios” e a categoria “pardo” nas contagens populacionais do império. Anais: 6º Encontro escravidão e Liberdade no Brasil meridional. Santa Catarina: UFSC, maio de 2013, p. 9.
[8] LITTLE, Paul. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Anuário Antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p. 268.
[9] DAVIS, Shelton. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os Índios do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.p. 138.
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