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Violência invisibilizada: a violência patrimonial como mecanismo de subjugação

Postado em 26 de junho de 2025 Por Maria Luíza Cabral e lone Campêlo  

Maria Luíza Cabral - Advogada e especialista em litigância estratégica em casos de Lei Maria da Penha. É mestranda em Direito pela UNICAP e especialista em Novas Questões de Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Damas - FADIC. É membro da Comissão de Direito Penal da OAB/PE.

lone Campêlo - Advogada especialista em litigância estratégica em casos de Lei Maria da Penha. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz e especialista em Direito Penal e Processo Penal. É membro da Comissão de Direito Penal e da Comissão da Mulher Advogada da OAB/PE.

Falar em desigualdade de gênero é, necessariamente, falar sobre como os direitos patrimoniais das mulheres foram e ainda são sistematicamente violados. Sob uma ótica histórica, é impossível ignorar a raiz desse desequilíbrio. Por séculos, as mulheres foram excluídas das esferas produtivas e privadas do direito de administrar bens, heranças e até a sua força de trabalho.

Um ponto de partida essencial para essa discussão é lembrar que, até 1962, a mulher, ao casar, perdia sua plena capacidade, tornando-se relativamente capaz, e precisava de autorização do marido para trabalhar. Foi com o Estatuto da Mulher Casada, promulgado naquele ano, que essa realidade começou a mudar. A partir dali, as mulheres começaram a conquistar o direito de gerir o seu próprio patrimônio. Foi um passo fundamental na emancipação jurídica e econômica das mulheres no Brasil.

Algumas décadas depois, concretizou-se uma das maiores conquistas de proteção aos direitos humanos das mulheres no contexto brasileiro: a criação da Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, que caracteriza diversos tipos de violência que podem acometer as mulheres em razão de seu gênero, incluindo a violência patrimonial.

Apesar dos avanços legislativos, a desigualdade patrimonial entre os gêneros persiste como expressão das estruturas patriarcais que regem a economia doméstica e o mercado formal. Ainda hoje, os privilégios masculinos ditam as regras de acesso e controle dos recursos e a consequência direta disso é a perpetuação da dependência financeira das mulheres.

A inserção da mulher no mercado de trabalho segue marcada por barreiras estruturais: sub-representadas nos cargos mais qualificados, salários inferiores aos dos homens pelo desempenho das mesmas funções e acúmulo de responsabilidade da dupla jornada – trabalho remunerado e o trabalho doméstico e de cuidados, quase sempre invisibilizado e não reconhecido economicamente.

A violência patrimonial, nesse contexto, surge como um dos mecanismos mais sofisticados de controle. Esse tipo de violência vai além da perda material. Ela destrói a possibilidade de autonomia feminina, subjugando-as a condições que reforçam sua dependência ou precariedade econômica. Em uma sociedade onde o dinheiro está intrinsecamente ligado à liberdade, retirar da mulher o controle de seus recursos é retirar sua capacidade de se proteger, de existir com dignidade e de recomeçar.

Na lida diária da advocacia, essa modalidade de violência se manifesta como mais uma expressão das estruturas de subjugação impostas às mulheres, gerando desafios tanto na esfera criminal quanto na familiar.

Na esfera familiar, o patrimônio, via de regra, permanece sob controle masculino, enquanto a mulher, responsável pela guarda fática dos filhos, assume sozinha os encargos do cuidado e do cumprimento irregular das obrigações alimentares por parte do genitor.

Esse contexto demanda dos advogados a responsabilidade em apresentar a verdadeira dimensão das desigualdades presentes e exige do Judiciário uma leitura sensível à realidade material das mulheres, especialmente no que diz respeito à distribuição do patrimônio e à fixação de alimentos. Decisões que desconsideram os marcadores de gênero na organização familiar acabam por naturalizar desigualdades históricas.

Um exemplo paradigmático está em recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (REsp 2138877/MG[1] julgado em maio de 2025), que reformou acórdão do Tribunal de Justiça mineiro, o qual havia decidido pela desnecessidade do pagamento de alimentos, sob o argumento de que a mulher teria “sobrevivido” por cerca de cinco anos sem o auxílio financeiro do ex-marido, desde a separação de fato até a sentença.

A relatora, Ministra Nancy Andrighi, ao aplicar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, alertou para a ideia preconceituosa e equivocada da divisão sexual do trabalho, “na qual homens são sempre os provedores e as mulheres cuidadoras”, demonstrando, portanto, os riscos de decisões judiciais que ignoram as estruturas desiguais de gênero.

A dinâmica torna-se ainda mais intrincada quando o patrimônio se converte em ferramenta de poder.

No campo criminal e no âmbito da violência doméstica e familiar, a violência patrimonial se revela em condutas cotidianas que são, muitas vezes, naturalizadas. Apropriação indevida de bens da mulher, retenção de documentos pessoais, destruição de pertences, ocultação de informações financeiras, endividamento forçado, impedimento de acessar contas bancárias, pensões e salários, ou ainda a recusa em dividir os bens comuns após a separação são apenas algumas expressões dessa violência, que pode assumir contornos cada vez mais sofisticados e dissimulados. Esses atos não apenas comprometem a estabilidade financeira da vítima, mas geram profundos danos psíquicos, alimentando o ciclo de violência e afetando diretamente sua autoestima, sensação de segurança e capacidade de reconstrução da vida com dignidade.

Casos em que decisões judiciais desconsideram o histórico de violência ou negam a incidência da Lei Maria da Penha sob o argumento de que se trata de uma controvérsia “meramente patrimonial” – restrita ao campo do direito civil – ilustram como o ambiente jurídico, quando desprovido de uma abordagem humanizada e holística, pode contribuir para a perpetuação do ciclo de violências. Identificar esses padrões e atuar pela promoção de um equilíbrio entre direitos deve ser o mote de uma advocacia comprometida com a transformação social.

É imprescindível um sistema que não apenas compreenda as nuances da violência patrimonial, mas que também atue de maneira eficaz para remediá-la. Um caminho necessário passa por reler o Código Penal à luz dos preceitos constitucionais e das diretrizes da Lei Maria da Penha, garantindo uma interpretação que considere as desigualdades de gênero como estruturais e persistentes. Afinal, quando o Judiciário valida práticas que reproduzem assimetrias históricas, é preciso perguntar: a quem essas decisões realmente servem?

Também nós, advogados e operadores do direito, precisamos exercitar a autocrítica: ao sustentar teses que promovem violência de gênero, perpetuam-se os abusos e o direito torna-se arma.

Precisamos, como sociedade, debater abertamente, combater abusos e exigir a criação de espaços equitativos que garantam às mulheres não apenas o direito à segurança, mas também à autodeterminação. Essa transformação requer ações assertivas, capazes de questionar privilégios e de construir bases para uma verdadeira igualdade.


[1]  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 2.138.877/MG. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 13 maio 2025.

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