1. Introdução
O Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) é um dos tributos mais relevantes para a arrecadação municipal e um dos instrumentos centrais de concretização do princípio da capacidade contributiva. Previsto nos arts. 32 e 34 do Código Tributário Nacional (CTN), o imposto recai sobre quem detém a propriedade, o domínio útil ou a posse do bem imóvel urbano.
A lógica dessa incidência é clara: somente quem possui o poder de usar, gozar ou dispor de determinado bem deve responder pelo encargo tributário que decorre dessa condição.
Entretanto, a realidade urbana brasileira tem desafiado essa estrutura normativa. Em diversas situações, proprietários que perderam a posse de seus imóveis em razão de invasões ou esbulhos possessórios continuam sendo cobrados pelo fisco municipal como se ainda fossem os titulares do bem. Essa distorção entre o cadastro tributário formal e a realidade fática da posse produz não apenas enriquecimento ilícito do Estado, mas também violação direta aos princípios da legalidade, razoabilidade e justiça fiscal.
Foi exatamente esse o contexto analisado pelo 3º Juizado Especial da Fazenda Pública da Capital do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), no processo nº 0035033-48.2022.8.17.2001, que tratou da cobrança de IPTU sobre imóveis invadidos. O Juízo reconheceu a inexistência de relação jurídico-tributária entre o contribuinte e o Município, determinando o cancelamento das Certidões de Dívida Ativa (CDAs) e a restituição dos valores pagos indevidamente, aplicando os fundamentos dos arts. 34, 165 e 167 do CTN, além do princípio da vedação ao enriquecimento sem causa (art. 884 do Código Civil).
Ao julgar os embargos de declaração posteriormente opostos, o magistrado manteve a coerência técnica da decisão e reforçou a aplicação dos Enunciados nº 9 e nº 24 do Grupo de Câmaras de Direito Público do TJPE, que consolidam a utilização da taxa SELIC como índice único de atualização monetária após a promulgação da Emenda Constitucional nº 113/2021.
Trata-se, assim, de um julgado paradigmático, que reafirma a natureza fática e não apenas formal do fato gerador do IPTU, e protege o contribuinte contra cobranças indevidas oriundas de omissões cadastrais do poder público.
Mais do que uma decisão isolada, o caso pernambucano representa um avanço na compreensão jurisprudencial sobre os limites da responsabilidade tributária em contextos de perda involuntária da posse, reafirmando o papel do Poder Judiciário como guardião da justiça fiscal e da legalidade na tributação municipal.
2. Contexto Fático: imóveis invadidos e cobrança indevida de IPTU
O caso submetido ao 3º Juizado Especial da Fazenda Pública da Capital do Tribunal de Justiça de Pernambuco teve origem em uma situação cada vez mais comum nas grandes cidades brasileiras: a cobrança de IPTU sobre imóveis urbanos invadidos e sem posse efetiva por parte do contribuinte.
Nos autos do processo nº 0035033-48.2022.8.17.2001, ficou comprovado que o autor da demanda havia perdido a posse de três imóveis localizados no Recife — identificados pelos sequenciais 4281071, 4281063 e 4281080 — em razão de invasões ocorridas há mais de duas décadas.
Apesar de não mais exercer qualquer poder sobre os bens, nem deles auferir renda, o contribuinte continuou sendo indevidamente incluído no cadastro fiscal do Município do Recife como responsável pelos lançamentos do IPTU, o que resultou em certidões de dívida ativa (CDAs), protestos cartorários e restrições em seu nome.
A documentação anexada à inicial demonstrou que o autor havia, inclusive, efetuado pagamentos forçados de tributos para sustar os protestos indevidos e evitar maiores prejuízos ao seu crédito. Foram juntados aos autos comprovantes de quitação, certidões imobiliárias e uma nota técnica emitida pela própria Secretaria de Finanças do Município, reconhecendo a inconsistência das cobranças diante da constatação de que os imóveis estavam ocupados irregularmente por terceiros.
Diante das provas apresentadas, o Juízo concluiu que o Município manteve equívoco cadastral, insistindo na cobrança mesmo após reconhecer a ausência de vínculo jurídico-tributário entre o contribuinte e os imóveis. Tal conduta, segundo a decisão, violou o princípio da legalidade tributária e caracterizou enriquecimento sem causa da Administração Pública, uma vez que o cidadão pagou tributos sem ter qualquer relação de posse, domínio útil ou propriedade sobre os bens — elementos indispensáveis ao fato gerador do IPTU, conforme o art. 34 do Código Tributário Nacional (CTN).
A sentença ressaltou ainda que o próprio comportamento da Prefeitura — ao posteriormente retirar o contribuinte do cadastro tributário — configurou reconhecimento tácito do pedido inicial, confirmando que a relação jurídico-tributária nunca existiu. O magistrado também destacou a relevância da prova documental, reconhecendo que a invasão dos imóveis e a perda da posse estavam devidamente demonstradas nos autos, e que a continuidade das cobranças configurava flagrante ilegalidade administrativa.
Posteriormente, ao julgar embargos de declaração, o Juízo constatou omissão na sentença quanto aos valores pagos após o ajuizamento da ação, determinando a devida retificação do dispositivo para incluir esses pagamentos adicionais e ajustar o montante a ser restituído, com atualização pela taxa SELIC, conforme os Enunciados 9 e 24 do Grupo de Câmaras de Direito Público do TJPE.
O caso transitou em julgado com decisão integralmente favorável ao contribuinte, consolidando a compreensão de que imóveis invadidos não geram obrigação tributária de IPTU, pois a posse e o domínio são pressupostos indispensáveis ao fato gerador.
3. Fundamentação da Sentença
A sentença proferida nos autos do processo nº 0035033-48.2022.8.17.2001, pelo 3º Juizado Especial da Fazenda Pública da Capital do TJPE, apresenta fundamentação sólida, construída sobre o tripé legal, fático e principiológico que sustenta o reconhecimento da inexistência de relação jurídico-tributária no caso de imóveis invadidos e sem posse efetiva.
O magistrado iniciou sua análise destacando que a relação jurídico-tributária do IPTU é necessariamente vinculada ao fato gerador previsto no art. 32 do Código Tributário Nacional (CTN) — ou seja, à propriedade, domínio útil ou posse do bem imóvel localizado em zona urbana.
Ao verificar que os imóveis em questão encontravam-se invadidos há mais de vinte anos, o Juízo concluiu que nenhuma dessas condições subsistia, o que tornava inexistente o fato gerador do imposto e, por consequência, ilegítima a exigência fiscal.
“A atitude do Réu ao retirar o Autor da qualidade de responsável tributário de todos os imóveis importa em reconhecimento parcial do pedido inicial. Como as partes concordaram com a inexistência de relação jurídico-tributária, tendo em vista as invasões ocorridas, é consequência lógica que todas as CDAs referentes aos débitos de IPTU devem ser imediatamente canceladas.”
(Trecho da sentença, Processo nº 0035033-48.2022.8.17.2001, 3º Juizado Especial da Fazenda Pública do Recife)
Essa passagem evidencia que o próprio Município, ao proceder à retirada do contribuinte do cadastro tributário, reconheceu administrativamente a inexistência de vínculo jurídico com os imóveis, o que reforça a tese de que a obrigação tributária jamais se constituiu validamente.
Com efeito, o art. 142 do CTN impõe à Administração Tributária o dever de observar a realidade fática e jurídica ao efetuar o lançamento, sob pena de nulidade. Quando o fato gerador não ocorre — como no caso de perda da posse —, não há crédito a ser constituído, sendo a cobrança nula ab initio.
A fundamentação também destacou o princípio da legalidade tributária (art. 150, I, CF/88), segundo o qual nenhum tributo pode ser exigido sem lei que o institua e defina seu fato gerador. Assim, ao cobrar IPTU de imóvel invadido, o ente municipal violou o princípio da reserva legal, pois ampliou o alcance da norma tributária para além dos limites estabelecidos pelo legislador.
O Juízo acrescentou ainda que o princípio da capacidade contributiva (art. 145, §1º, CF/88) impede que o Estado tribute quem não tem disponibilidade econômica nem jurídica sobre o bem.
Segundo Luciano Amaro:
“a capacidade contributiva é elemento condicionante da justiça fiscal; exige que o tributo recaia sobre quem revele efetiva potencialidade de contribuir, e não sobre quem, por circunstância alheia à sua vontade, se vê privado do bem” (Direito Tributário Brasileiro, 25ª ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 110).
No caso concreto, o contribuinte demonstrou, com documentos oficiais, que não exercia qualquer poder sobre os imóveis desde as invasões, e que a própria municipalidade reconhecera a ocupação irregular.
Diante disso, o magistrado entendeu que a cobrança posterior configurou enriquecimento sem causa da Administração Pública, o que contraria não apenas o art. 884 do Código Civil, mas também o art. 167, parágrafo único, do CTN, que expressamente veda a retenção de valores indevidos sob o pretexto de obrigação tributária inexistente.
A sentença, portanto, declarou a inexistência de relação jurídico-tributária entre o contribuinte e os imóveis de sequenciais 428107X, 428106X e 428108X, determinando o cancelamento das Certidões de Dívida Ativa (CDAs) e a restituição integral dos valores pagos indevidamente, com atualização monetária pela taxa SELIC.
A adoção da SELIC foi expressamente fundamentada nos Enunciados nº 9 e nº 24 do Grupo de Câmaras de Direito Público do TJPE, em consonância com a Emenda Constitucional nº 113/2021, que unificou, para os débitos e créditos da Fazenda Pública, juros e correção monetária em um único índice.
Além do conteúdo material, a decisão apresentou consistência processual, observando o disposto no art. 492 do Código de Processo Civil (CPC), segundo o qual o juiz deve decidir a lide nos limites em que foi proposta, e no art. 141 do CPC, que impõe o dever de congruência entre o pedido e a decisão.
O Juízo também fez referência à Súmula 399 do STJ, que consagra que “a legislação municipal define o sujeito passivo do IPTU, observados os arts. 32 e 34 do CTN” — reforçando que, em qualquer hipótese, é indispensável a posse, propriedade ou domínio útil como elemento constitutivo da obrigação tributária.
Posteriormente, ao apreciar embargos de declaração opostos pelo autor, o magistrado acolheu parcialmente o pedido, reconhecendo que havia omitido valores pagos após a propositura da ação. Com base no art. 1.022, II, do CPC/2015, corrigiu o erro material e complementou a sentença, incluindo as parcelas omitidas e mantendo os critérios de atualização fixados.
Essa decisão demonstrou rigor técnico e coerência interna, uma vez que o Juízo não alterou o mérito da causa, apenas sanou omissão relevante para a execução da sentença, garantindo integralidade e exequibilidade ao provimento judicial.
Ao final, o conjunto decisório do caso consolidou três premissas jurídicas centrais, todas alinhadas à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e à doutrina tributária contemporânea:
Tais fundamentos, aplicados de forma harmônica, revelam uma sentença que se destaca pela adequação legal, consistência probatória e comprometimento com a justiça fiscal, reafirmando o papel do Poder Judiciário como freio ético e jurídico às distorções tributárias municipais.
4. Embargos de Declaração e Ajuste do Valor da Restituição
Após a prolação da sentença que reconheceu a inexistência de relação jurídico-tributária e determinou o cancelamento das Certidões de Dívida Ativa (CDAs) referentes aos imóveis invadidos, o autor opôs embargos de declaração, com fundamento no art. 1.022, II, do Código de Processo Civil (CPC/2015).
Sustentou-se que a decisão havia incorrido em omissão quanto à inclusão de valores adicionais pagos no curso do processo — pagamentos estes comprovadamente realizados para sustar protestos indevidos relativos aos mesmos imóveis.
O Juízo do 3º Juizado Especial da Fazenda Pública da Capital do Tribunal de Justiça de Pernambuco, ao examinar o pedido, acolheu parcialmente os embargos, reconhecendo o equívoco e corrigindo o dispositivo sentencial para incluir as parcelas omitidas e determinar a atualização monetária dos valores pela taxa SELIC, em conformidade com a Emenda Constitucional nº 113/2021 e com os Enunciados nº 9 e nº 24 do Grupo de Câmaras de Direito Público do TJPE.
Tal complementação reforçou a integralidade e a exequibilidade da decisão, garantindo a perfeita correspondência entre os fundamentos e o dispositivo.
“Acolho os embargos de declaração para alterar o item 7 da sentença, o qual passará a ter o seguinte texto:
‘Por fim, condeno o ente público a restituir ao Autor os valores pagos indevidamente, atualizados conforme os Enunciados 9 e 24 do Grupo de Câmaras de Direito Público do TJPE e apenas pela SELIC, a partir da publicação da EC 113/2021, mediante apresentação da memória de cálculos por ocasião do cumprimento de sentença.’”
(Trecho dos Embargos de Declaração – Processo nº 0035033-48.2022.8.17.2001, 3º Juizado Especial da Fazenda Pública da Capital, Rel. Juiz Edvaldo José Palmeira)
4.1. O papel dos embargos de declaração e a coerência decisória
Os embargos de declaração, conforme leciona Fredie Didier Jr., têm natureza de instrumento de aperfeiçoamento da decisão judicial e não de reexame do mérito:
“Os embargos de declaração não são um recurso de revisão do mérito. Têm a finalidade de aperfeiçoar o provimento jurisdicional, tornando-o claro, coerente e exequível, seja por eliminar contradição, suprir omissão ou corrigir erro material.”
(DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. v. 3. Salvador: JusPodivm, 2023, p. 564.)
O magistrado, ao acolher parcialmente os embargos, observou fielmente os limites do art. 1.023, §2º, do CPC, garantindo que a decisão refletisse a totalidade das provas e pagamentos constantes dos autos, sem alterar o conteúdo essencial do julgamento.
Esse procedimento assegurou o respeito ao princípio da congruência (art. 492 do CPC) e reforçou a segurança jurídica, assegurando que o comando sentencial fosse completo, coerente e executável.
4.2. A repetição do indébito e a vedação ao enriquecimento sem causa: doutrina e aplicação
O reforço da condenação à restituição dos valores pagos indevidamente encontra amparo direto nos arts. 165 e 167 do Código Tributário Nacional (CTN) e no art. 884 do Código Civil, os quais proíbem a retenção de quantias pagas sem justa causa e consagram a vedação ao enriquecimento sem causa da Administração Pública.
A doutrina consagra tal entendimento. Luciano Amaro, em sua obra clássica, afirma:
“O Estado não pode enriquecer à custa de tributo indevido. A devolução do que foi pago sem causa legítima é consequência do princípio da legalidade e do próprio conceito de justiça tributária.”
(AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 460.)
Na mesma linha, Ricardo Lobo Torres observa que:
“A restituição do indébito tributário é expressão da boa-fé objetiva do Estado e um desdobramento do princípio da moralidade administrativa. O Fisco deve ser o primeiro a corrigir seus próprios erros, devolvendo o que recebeu sem fundamento legal.”
(TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2018, p. 452.)
Por sua vez, Paulo de Barros Carvalho oferece a base teórica do raciocínio aplicado no caso:
“A ocorrência do fato gerador é o único elemento capaz de fazer nascer a obrigação tributária. Sua inexistência impede o nascimento da relação jurídica. O pagamento realizado fora desse quadro é um não-pagamento tributário, um ato sem causa jurídica que deve ser restituído.”
(CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 339.)
Tais fundamentos teóricos sustentam o núcleo da decisão judicial: a invasão dos imóveis e a perda da posse suprimem o elemento fático essencial do IPTU, tornando indevida qualquer exigência fiscal.
Os pagamentos efetuados pelo contribuinte, ainda que para afastar protestos, não se revestem de legitimidade jurídica e, portanto, devem ser integralmente restituídos.
4.3. A atualização pela taxa SELIC e a orientação pós-Emenda Constitucional nº 113/2021
A opção do magistrado por fixar a taxa SELIC como índice de atualização monetária e juros dos valores a restituir reflete a modernização da jurisprudência tributária e a aplicação direta do princípio da simetria fiscal.
Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 113/2021, o ordenamento passou a admitir a SELIC como índice único para atualização dos débitos e créditos da Fazenda Pública, substituindo a prática anterior de cumulação entre índices inflacionários e juros moratórios.
O Grupo de Câmaras de Direito Público do TJPE, por meio dos Enunciados Administrativos nº 9 e nº 24, consolidou tal entendimento, determinando que, a partir da EC 113/2021, a SELIC é o único parâmetro válido para correção monetária e juros nos débitos e créditos da Fazenda Pública.
A adoção desse índice assegura isonomia entre contribuinte e Fisco, evitando distorções e garantindo uniformidade de critérios.
O entendimento judicial também está em perfeita consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que reafirmou:
“A taxa SELIC é aplicável como índice único de atualização nas repetições de indébito tributário, compreendendo juros e correção monetária.”
(STJ, AgInt no REsp 1.916.425/RS, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, j. 06/12/2022, DJe 14/12/2022.)
Ao aplicar a SELIC, o Juízo demonstrou alinhamento com a tendência jurisprudencial nacional, além de conferir efetividade e equidade à restituição, garantindo que a devolução dos valores ocorra sem perda econômica para o contribuinte, mas também sem onerar indevidamente o erário.
4.4. Síntese interpretativa
O acolhimento parcial dos embargos de declaração no processo nº 0035033-48.2022.8.17.2001 evidencia um exemplo de aperfeiçoamento judicial da prestação jurisdicional.
A decisão, tecnicamente irretocável, reafirma princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito: legalidade, moralidade, capacidade contributiva e justiça fiscal.
Mais do que um simples ajuste processual, os embargos representaram o refinamento da decisão de mérito, assegurando sua completude e exequibilidade, sem afastar o núcleo essencial do julgado: a impossibilidade de cobrança de IPTU sobre imóvel invadido e o direito à restituição de quantias indevidamente pagas.
5. Fundamentos Jurídicos Aplicáveis
A decisão encontra respaldo na doutrina e na jurisprudência que consolidam a inexistência de obrigação tributária quando o fato gerador não ocorre. De acordo com o art. 34 do CTN, o contribuinte do IPTU é quem detém a propriedade, o domínio útil ou a posse do imóvel.
Em caso de invasão ou esbulho possessório, cessa a posse e, portanto, desaparece o fato gerador.
O julgado aplicou também o princípio da vedação ao enriquecimento ilícito (art. 884 do CC), reafirmando que o Município não pode manter valores recebidos de tributo sem respaldo legal.
A restituição foi determinada com base no art. 165, I, do CTN, que assegura ao sujeito passivo o direito à devolução do indébito tributário.
6. Jurisprudência Correlata
O entendimento adotado no processo está em consonância com precedentes do STJ e do próprio TJPE, como se observa nos seguintes julgados:
“O sujeito passivo do IPTU é o proprietário do imóvel, o titular do domínio útil ou o possuidor a qualquer título. Ausente a posse ou propriedade, inexiste obrigação tributária.”
(STJ, AgInt no AREsp 1.502.918/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, j. 12/05/2020, DJe 19/05/2020).
“A ausência de relação jurídica tributária impede a constituição válida do crédito de IPTU, impondo-se a declaração de inexigibilidade e a restituição dos valores indevidamente pagos.”
(TJPE, Apelação Cível nº 0001368-84.2018.8.17.2001, Rel. Des. Francisco Bandeira de Mello, 2ª Câmara de Direito Público, j. 22/03/2023).
7. Conclusão
O julgamento proferido no processo nº 0035033-48.2022.8.17.2001 representa um marco paradigmático na consolidação do entendimento de que a tributação deve refletir a realidade fática, e não apenas o registro formal.
Ao reconhecer a inexistência de relação jurídico-tributária em razão da invasão e perda da posse dos imóveis, o Juízo reafirmou que o fato gerador do IPTU exige a presença concreta de propriedade, domínio útil ou posse legítima, sob pena de violação ao art. 34 do CTN e ao princípio da legalidade tributária.
O caso evidencia uma lição essencial: o cadastro imobiliário é instrumento administrativo, não criador de obrigação tributária. Quando a realidade material — como a invasão ou o esbulho possessório — rompe o vínculo de domínio, a presunção fiscal cede diante da verdade dos fatos.
Nesse sentido, o magistrado aplicou corretamente o princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, CF/88), garantindo que ninguém seja compelido a contribuir sem dispor de riqueza ou poder econômico correspondente.
A decisão também reafirma o papel do Poder Judiciário como guardião da justiça fiscal, atuando como contrapeso diante de lançamentos tributários automáticos e insensíveis à realidade social.
A restituição dos valores pagos indevidamente, corrigidos pela taxa SELIC, dá concretude à doutrina de Luciano Amaro, segundo a qual “a devolução do tributo indevido é dever do Estado e direito do contribuinte, expressão do próprio princípio da legalidade” (Direito Tributário Brasileiro, 25. ed., 2019, p. 460).
Converge ainda com a lição de Ricardo Lobo Torres, para quem a restituição do indébito traduz “o dever ético do Estado de não se locupletar à custa do contribuinte, sob pena de ferir a moralidade e a boa-fé administrativa” (Curso de Direito Financeiro e Tributário, 10. ed., 2018, p. 452).
Do ponto de vista estrutural, a sentença pernambucana alinha-se ao pensamento de Paulo de Barros Carvalho, que ensina que “sem fato gerador não há obrigação tributária, e qualquer pagamento nessa hipótese é juridicamente inexistente e deve ser restituído” (Curso de Direito Tributário, 31. ed., 2020, p. 339).
A coerência entre fundamento teórico, prova documental e norma de regência fez deste caso um exemplo de decisão equilibrada e tecnicamente irrepreensível.
Em síntese, o caso confirma que a tributação não pode ser cega à realidade.
A invasão de imóvel extingue o elo jurídico-tributário porque retira do contribuinte o elemento essencial da incidência: a posse.
Manter a cobrança em tal contexto seria legitimar o enriquecimento sem causa do Estado, em flagrante afronta aos princípios da legalidade, razoabilidade e justiça fiscal.
Mais do que resolver um litígio individual, a decisão projeta efeitos pedagógicos e institucionais: obriga a Administração Tributária a aperfeiçoar seus cadastros, a agir com boa-fé e a respeitar o limite ético da tributação.
Trata-se, portanto, de uma vitória não apenas do contribuinte, mas do próprio Estado de Direito, que reafirma, pela via judicial, que não há tributo sem fato gerador, nem obrigação sem justiça.
Referências
1. Legislação
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da União, Brasília, 27 out. 1966.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Diário Oficial da União, Brasília, 17 mar. 2015.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jan. 2002.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 113, de 8 de dezembro de 2021. Altera a forma de atualização monetária dos débitos da Fazenda Pública, instituindo a aplicação da taxa SELIC. Diário Oficial da União, Brasília, 9 dez. 2021.
2. Jurisprudência
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). AgInt no Recurso Especial nº 1.916.425/RS. Relator: Ministro Gurgel de Faria. Primeira Turma. Julgado em 6 dez. 2022. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 14 dez. 2022.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Súmula nº 399. “A legislação municipal pode definir o sujeito passivo do IPTU, observados os arts. 32 e 34 do CTN.” Aprovada em 22 set. 2009.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO (Brasil). Enunciados Administrativos nº 9 e nº 24 do Grupo de Câmaras de Direito Público. Recife, 2022. Disponível em: https://www.tjpe.jus.br/. Acesso em: 10 nov. 2025.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO (Brasil). Processo nº 0035033-48.2022.8.17.2001. 3º Juizado Especial da Fazenda Pública da Capital. Sentença proferida em 16 abr. 2025. Embargos de Declaração julgados em 9 out. 2025. Relator: Juiz Edvaldo José Palmeira.
3. Doutrina
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 25. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 31. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3: Processo de Conhecimento. 21. ed. Salvador: JusPodivm, 2023.
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2018.
4. Fontes complementares
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). Entendimento consolidado sobre o sujeito passivo do IPTU. Portal Institucional do STJ. Brasília, 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO (Brasil). Informativos de Jurisprudência das Câmaras de Direito Público. Recife, 2024-2025. Disponível em: https://www.tjpe.jus.br/.
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